segunda-feira, 1 de abril de 2013

A crise de referências da esquerda

Fonte: 01/04/2013 05:00:17 por Eugênio Nascimento em Coluna Afonso Nascimento


Afonso Nascimento  -  Advogado e Professor de Direito da UFS

A passagem recente da dissidente política cubana Yaoni Sanchez pelo Brasil forneceu uma ótima chance para, quem quis ver, observar um espetáculo lamentável. Com efeito, de um lado, estava a direita brasileira se divertindo, a pedir que ela falasse, ou seja, que ela criticasse a velha ditadura do Caribe, e, de outro, membros da esquerda a hostilizar a bloguera sem graça, chegando até a impedi-la de participar de evento em Feira de Santana, na Bahia. No fim das contas, até onde tive paciência para acompanhar as demonstrações patéticas de besteirol político, ela não criticou o regime de seu país, fazendo, como era de esperar, elogios à democracia brasileira. Mas a coisa não ficou nisso: pessoas apresentaram, na internet, números positivos de indicadores sociais como forma de justificar o totalitarismo tropical cubano. Em seguida ocorreu a morte do presidente Hugo Chávez da Venezuela. A estória também se repetiu nesse caso. De fato, a direita brasileira fazendo o seu melhor para falar o pior do ditador ou do caudilho "bolivariano" e do seu legado, enquanto a esquerda, por sua vez, apresentava outros números também positivos de indicadores sociais para legitimar o regime quase ditatorial venezuelano.

Que reflexões fazer desses dois episódios em relação à esquerda? A primeira delas é que a esquerda não é sincera quando diz que, depois das experiências totalitárias na Rússia, na China e da Albânia (só para ficar com alguns exemplos), converteu-se incondicionalmente à democracia. Isso mesmo. Em nome de alguma espécie de igualitarismo, ela parece estar disposta ainda a defender ditaduras completas e incompletas. Qual seria a atitude correta de uma esquerda de fato democrática? Seria o comportamento político que tiveram forças políticas de países do Leste Europeu, depois do fim totalitarismo, de defender a preservação de seus direitos sociais e bater-se pela gestão democrática da sociedade. O que isso significa dizer? Isso quer dizer colocar no mesmo patamar valores como a igualdade e a liberdade. Não pode haver confusão: o valor igualdade é tão importante quanto o de liberdade. Embora seja possível chegar a alguma forma de igualdade pelo autoritarismo, é melhor que isso aconteça pela via democrática. A democracia é fim, e não meio como pensava antigamente (e pelo visto ainda hoje) pensava a esquerda.

No caso de Cuba, ela é uma ditadura completa em fase de definhamento definitivo. O seu "modelo" de sociedade tornou-se insustentável e, com um pouco de liberdade, quebra-se totalmente. As pessoas podem acusar o embargo norte-americano como o responsável pelo fracasso econômico cubano, mas isso não basta. Cuba foi o mais importante peão da Guerra Fria nas Américas e durante muito tempo sobreviveu por conta da cooperação econômica e dos subsídios da antiga URSS. Depois que esta deixou de existir, a situação cubana se tornou inviável. Para sua sorte, todavia, Hugo Chávez passou a ajudar Cuba com petróleo  da mesma forma que apoiava a Nicarágua de Daniel Ortega. Hoje em dia o problema de Cuba é tão difícil hoje que, se não ocorrer uma abertura mais rápida na direção da democracia, os cubanos terminarão por fazer outra revolução (neste caso, democrática) contra a revolução de Fidel e de Guevara. Mais ainda: dependendo de como seja conduzido esse processo de abertura, a ilha do Caribe poderá conhecer uma migração em massa de cubanos com competências técnicas aproveitáveis noutras partes do mundo, reproduzindo de forma alargada os "boat people" de tempos atrás.

No caso da Venezuela, a situação é diferente. Ali o que está em jogo é um retrocesso político muito grande, que pode levar a uma ditadura de direita. Os problemas de governantes populistas são dois: enfraquecimento das instituições democráticas existentes, por cima das quais os populistas navegam para governar diretamente com as massas populares. Pois bem. Muito antes da morte biológica de Chávez (a sua morte política é para mais tarde, não se sabe quando), eu sempre me colocava, só para argumentar, a questão: estará ele construindo fortes instituições democráticas para resistir à ofensiva que virá da direita daquele país? Depois de sua morte, quando vi na TV as demonstrações de apoio ao regime chavista pelo chefe das forças armadas, de punho erguido, e da presidente da suprema corte daquele país vizinho e grande parceiro comercial brasileiro, não pude deixar de concluir: a Venezuela, com as duras lutas políticas que virão, ou tenderá para uma ditadura de direita ou para uma ditadura de esquerda. O caminho para a democracia não me parece evidente em virtude da forte polarização daquela sociedade.

A segunda reflexão diz respeito à crise de referências da esquerda brasileira. Essa crise tem três aspectos: crise de referências em termos de autores e livros que a esquerda lia e lê; crise de referências quanto às experiências históricas concretas que orientam seguidores da esquerda; e crise de referências quanto ao próprio exercício do poder pela esquerda brasileira. Pelo que sei de minha aproximação com militantes de esquerda, pela leitura de documentos públicos e por falas em eventos públicos, os autores e livros consultados são os de sempre: o brilhante e arrogante intelectual Marx, o ditador e intelectual Lênin, o lunático Trotsky, etc. Nada mudou. Só tentativas - às vezes nem isso - de interpretação de velhos cânones muito empoeirados.

Quanto às experiências históricas concretas, saudosistas ainda mencionam a imperialista Rússia. Outros mencionam as altas taxas de crescimento econômico da China, esquecendo-se de que esse país pede para ser chamado de economia de mercado e que pratica uma nova forma de capitalismo selvagem no mundo. Envergonhados, alguns nem mais citam a abominável ditadura albanesa. Todavia, a referência maior parece continuar sendo Cuba. Muitas pessoas dão a impressão de terem parado no tempo, depois de lerem o famoso livrinho do comunista Fernando Morais ("A Ilha") nos anos 1970 ou após terem feito alguma visita àquele país e terem conhecido a boa música cubana (a turma do Buena Vista Social Club, Pablo Milanês, Sílvio Rodriguez, etc.). Em que o país caribenho pode servir de modelo para forças políticas que se querem democráticas? O mesmo diga-se em relação aos irmãos Castro. Indo além, também vale perguntar: em que o espalhafatoso coronel Hugo Chávez podia e pode ser fonte de inspiração para a esquerda brasileira que se quer democrática? Difícil imaginar algo.

Quanto às práticas políticas da esquerda no poder, em nome de uma real politik ou de um pragmatismo político (supostamente sinônimo de maturidade política), os costumes políticos brasileiros não têm sido melhorados: nepotismo em larga escala (com direito a citação de decisão do STF), mensalões, práticas clientelistas e assistencialistas, etc. Não chegou a hora de repensar esse conjunto de referências da esquerda brasileira? O que fazer? Por onde recomeçar? Considero que o melhor caminho é abandonar completamente a ideia de que existe ditadura boa. Nenhuma ditadura presta. Em seguida, o negócio é estudar a literatura contemporânea sobre a democracia e mergulhar na história social e politica brasileira esvaziada do ranço das narrativas da velha guarda.

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