terça-feira, 1 de abril de 2014

Letras e artes: resistindo

Fonte: Rede Brasil Atual
A literatura, o teatro, o cinema e artes visuais apresentaram obras pujantes e contestadoras até 1968, até serem destroçadas pelo AI-5. Já na música, os compositores e intérpretes conseguiram, ainda que sob forte perseguição, criar peças de resistência que marcam o cenário cultural deste período
por Walnice Nogueira Galvão, da Teoria e Debate* publicado 30/03/2014 15:38
reprodução
cabra
Obra-prima, 'Cabra Marcado para Morrer' era o espírito do Centro Popular de Cultura

Em 1964, a atmosfera cultural efervescente não preparou ninguém para o golpe, que caiu como um raio sobre as letras e as artes. O novo regime proibiu, censurou, mutilou, perseguiu, garroteou as vozes, causando esterilidades e inflexões de rumo. E, quando apeou do poder, não foi possível retomar o ponto de partida: a história derrapara em direções inesperadas.
Ficou o patamar de uma “idade de ouro”, panorama artístico e cultural de pujança única, tomando impulso ainda na era Kubitschek; e que, apesar do golpe, conheceria uma intensificação até 1968, para ser destroçado pelo AI-5. Nunca se recuperou: as consequências para o campo do imaginário foram tremendas e irreversíveis.
Ressalte-se que é no pré-golpe, ou seja, em 1962, que se inaugura um componente fundacional nesse tópico: o Centro Popular de Cultura (CPC), cujas filiais se multiplicaram pelo Brasil inteiro. Ativo órgão da UNE, abria-se à participação de quem quisesse trabalhar, intelectuais e artistas em geral, unidos no propósito de levar cultura para o povo. Um projeto desprendido e bem intencionado, que fecundaria a cultura brasileira com realizações notáveis. Paralelamente, a alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire era assumida como missão pelos estudantes, no país todo.
Para ter uma noção do que se tratava, convém assistir à obra-prima que é o documentário de Eduardo Coutinho, iniciativa do CPC, Cabra Marcado para Morrer. O filme tem o espírito do CPC e mostra em sua própria fatura tanto os tropeços trazidos pela história quanto a fortaleza ante a adversidade. Dedicado ao assassinato de um líder das Ligas Camponesas da Paraíba, João Pedro Teixeira, a mando dos proprietários de terras, foi interrompido pelo advento do golpe. Só seria terminado vinte anos depois, em 1984, sob a democracia resgatada, já incorporando a sua estrutura o hiato como fonte de renovadas reflexões.
Como se pode constatar naquilo que permaneceu, a exemplo desse filme, essa é uma das mais férteis fases de criação cultural já havidas no país.
Comecemos pelas letras. A prosa literária referente a 1964 traça um arco contínuo com aquela provocada pelo AI-5 de 1968,  transformando-se à medida que o regime enrijecia. Agrupa-se em três vertentes, que são o romance dos veteranos, o memorialismo dos jovens e a biografia.
De imediato, surgiram Quarup, de Antonio Calado, e Pessach – A Travessia, de Carlos Heitor Cony, em 1967. Não por coincidência, ambos terminam com seus heróis partindo para a guerrilha. A obra de Calado abriria uma sequência de romances que vão acompanhando as metamorfoses do monopólio do poder fardado, sempre do ponto de vista de quem o sofre na carne. Depois de Quarup viriam mais três. Bar Don Juan (1971) é povoado pela chamada “esquerda festiva”, que começava a pegar em armas. Reflexos do Baile (1976) já penetra pela ofensiva da retaliação, de uma brutalidade até então inédita no país, e pelo terror de Estado. Sempreviva (1981), ao tratar de um guerrilheiro regressando do degredo, completa o ciclo, que devemos àquele que se tornou o cronista da esquerda no período.
Por sua vez, Lygia Fagundes Telles escreveu o romance As Meninas (1973), em que, ao pôr em cena três colegas vivendo juntas num pensionato, uma delas ativista política, mostra o arrocho com que os tiranos do momento atormentam os estudantes.
Já rezando pela cartilha alegórica, na craveira do “realismo mágico” tão em voga na América hispânica coeva, outros veteranos procederiam a seu ajuste de contas. Os defuntos insepultos de Erico Verissimo, em Incidente em Antares (1971). Os desmandos de um prefeito que preserva a paz social castigando e exterminando, em Os Tambores Silenciosos (1977), de Josué Guimarães. A clausura do universo totalitário em que paira uma atmosfera de pesadelo, em A Hora dos Ruminantes (1966), A Máquina Extraviada (1968) e Sombras dos Reis Barbudos (1972), de José J. Veiga.
Em suma, como já não era viável falar diretamente do que se passava, desdobra-se uma literatura que revela o estrangulamento da expressão justamente nas tramoias para driblá-lo. São suas armas a elipse (o não dito) e a metáfora (o dito indireto ou figurado). Estamos no reino da alegoria, do simbolismo, do surrealismo, da colagem e da montagem, da linguagem críptica, dos personagens à clef – enfim, das muitas formas do circunlóquio.
Logo surgiria Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, que, rejeitado por vários editores, acabaria saindo na Itália em 1974 e só um ano depois no Brasil, para ser apreendido e vetado em todo o território nacional. Integrado por cacos de prosa experimental de cunho variado mas sempre crítico, compõe um imenso mural em forma de mosaico.
Outro foi A Festa (1976), de Ivan Ângelo, em que um evento, invadido por baderneiros fascistas, termina apocalipticamente em incêndio. No mesmo ano saiu Quatro Olhos (1976), de Renato Pompeu, cujo protagonista, preso e torturado como o autor, fala de um manuscrito que se extraviou e do qual rememora frangalhos. Escrito extramuros é Maíra (1976), de Darcy Ribeiro, que traz para a épica o debate sobre a condição dos índios na sociedade brasileira.
Os romances da saga da esquerda, numerosos e relevantes, aos poucos cederam o passo ao memorialismo e à biografia.
O memorialismo, literatura típica de velhos, de repente passa a ser feito por jovens que antes dos 30 anos já têm reminiscências terríveis para contar. Embora leve mais de dez anos para aparecer, é consequência direta de 64. A pressão do totalitarismo acuou rapazes e moças no rumo das armas, assassinou-os, seviciou-os, fez deles clandestinos e desenraizados. O memorialismo resultante, que tem a peculiaridade de ser feito por jovens num gênero típico da velhice, não terminou até hoje.
Entre os primeiros, Renato Tapajós, que, trancafiado na cadeia por cinco anos, publicou Em Câmara Lenta (1977) e foi preso de novo, por causa do livro, até então nem punido, nem interditado, mas que o seria após a segunda detenção. Carro-chefe logo se tornou O Que é Isso, Companheiro?, de Fernando Gabeira (1979), relato em primeira mão de uma proeza espetacular: o sequestro de um embaixador norte-americano. Em seguida, surgiu Os Carbonários (1980), de Alfredo Sirkis, que estreou no ativismo rebelde ainda adolescente de colégio, dali passando à guerrilha. Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado federal Rubens Paiva, um dos mais célebres “desaparecidos” do regime, publicou Feliz Ano Velho (1982). Pela quantidade e pelo interesse, esse memorialismo dos jovens é fato único em nosso panorama.
Uma boa janela tanto para 1964 quanto para a saga da esquerda anterior ao período têm sido as biografias de militantes, que não cessam de se multiplicar, havendo muitas em progresso nesse momento. Pedem menção as de Olga Benário Prestes e de Patrícia Galvão, ou Pagu – ambas alvo da sanha da ditadura Vargas, mas com suas histórias só reveladas no pós-64 –, Iara Iavelberg, Marighella (que acaba de ganhar o prêmio Casa de Las Américas), Joaquim Câmara Ferreira, Lamarca, Pedro Pomar, Mário Alves, Luiz Carlos Prestes, Wladimir Herzog, Gregório Bezerra, Helenira Resende, João Amazonas, Eduardo Leite, o Bacuri. E estratégicas por devassarem a truculência das masmorras e das almas tenebrosas, as do cabo Anselmo e do delegado Fleury. Enriquecem o acervo as de dom Helder Câmara e de Sobral Pinto, bem como a autobiografia de dom Paulo Evaristo Arns.
O Cinema Novo, iniciado ainda nos tempos de JK, foi atingido em cheio pelo golpe. Fase de maior fastígio a que a produção brasileira já aspirou, obteve, em raro lance, reconhecimento no exterior. Culminou no festival de Cannes do ano de 1964, justamente, quando foram exibidos Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Depois dessa data, e até o AI-5, nosso cinema passaria a participar abertamente da discussão sobre o despotismo e os caminhos para confrontá-lo. É o que predomina tanto em Os Fuzis (1964), de Rui Guerra, premiado no festival de Berlim, quanto em Terra em Transe (1966) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968), este premiado no festival de Cannes, ambos de Glauber Rocha. A catástrofe que foi o golpe teve um claro resultado: mais de uma década se passaria até que um filme brasileiro ganhasse prêmios de novo.
Por sua vez, o teatro conheceu a eclosão de uma dramaturgia nacional e altamente politizada, apanágio do Arena e do Oficina.
No Arena, liderado por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, o primeiro sucesso foi Eles Não Usam Black-Tie (1958), crônica de uma greve operária. Daí em diante, contou com um êxito atrás do outro, com peças recém-escritas em seu ateliê de dramaturgia. Após o golpe de 64, criou uma linha de shows musicais de recorte libertário, constituindo um repertório original por sua concepção. Arena Conta Zumbi, Arena Conta Tiradentes, Castro Alves Pede Passagem gerariam uma leva de espetáculos na mesma linha, como Opinião e Liberdade, Liberdade, só que em outros teatros.
No Oficina, entre as várias realizações de José Celso Martinez Corrêa distinguem-se O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, e  Roda-Viva, de Chico Buarque, estreias brilhantes e inventivas. Acrescente-se Galileu Galilei, de Brecht, falando de um cientista constrangido a abjurar de suas ideias sob pena de ser questionado pela Inquisição.
Duas obras, todavia, ambas de inspiração popular e sertaneja, alheias a esses teatros e disseminadas por amadores estudantes, tiveram outros destinos. Uma delas, O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi a peça mais divulgada no país em toda a década. A outra, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto, encenada pelo Tuca de São Paulo, com música de Chico Buarque, ganharia o prêmio do festival de Nancy, na França, em 1966.
As artes visuais também reagiriam à ingerência do golpe de 64. Os artistas engrossariam as fileiras da oposição e organizariam Opinião 65, a mostra coletiva carioca antiditatorial que marcou época. Na continuação, haveria o Mês de Arte Pública (1968), realizado ao ar livre no Aterro do Flamengo, no Rio. Um arroubo de obscurantismo negaria licença para a exposição dos artistas brasileiros selecionados para a VI Bienal de Paris, programada para o Museu de Arte Moderna do Rio, no ano seguinte. A Associação Brasileira de Críticos de Arte, presidida por Mário Pedrosa, protestou oficialmente, enquanto se convocava o boicote internacional à próxima Bienal de São Paulo.
Enquanto isso se passa nessas artes, o golpe de 64 recai em cheio sobre a bossa nova. Intimista, de temática romântica e hedonista, bem “carioca zona sul”, as agruras do novo regime a fariam desgarrar-se à força do minimalismo de seu paradigma.
Se o teatro se desmantelava, o cinema perdia o rumo e a literatura ia para a gaveta, já a música popular conheceria o apogeu, fielmente acompanhando os matizes das várias fases que a insurgência atravessaria. Foi um período em que a canção e os compositores se encastelaram em trincheira de contestação, e sofreram as consequências de sua postura, retribuída com censura, perseguição, cadeia, banimento.
A resistência que se expressa na canção tem várias faces. Sem deixar passar muito tempo, Chico Buarque, em Sonho de um Carnaval (1965), utilizaria a velha metáfora sambística do contraste entre a euforia fugaz do carnaval e o luto subsequente da Quarta-Feira de Cinzas, para falar do golpe. Seguem-se, desse autor, vinte anos de uma obra de inquebrantável dissidência.
Outra face é a da propaganda da luta armada, que se avizinhava. O mais impressionante dentre esses brados de rebeldia é Carcará (“Pega, mata e come/ mais coragem do que homem”), de João do Valle, sucesso sem igual em 1965 e nos anos imediatos, divulgado país afora pelo show Opinião. Em Viola Enluarada, de Marcos e Paulo Sérgio Valle (1967), a reversibilidade entre, de um lado, cantar, e de outro, pegar em armas, é explícita: “A mão que toca o violão/ se for preciso faz a guerra”.
Ainda mais uma face traz o compromisso do artista de levar alento aos oprimidos, anunciando a futura libertação. É disso que fala Porta-Estandarte (1966), de Geraldo Vandré. Com êxito cada vez maior, o compositor faria Disparada (1966), que avançava a proposta de violência e expunha didaticamente o processo de aquisição de uma consciência revolucionária: “Aprendi a dizer não”. Depois disso, Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores (1968) admoestava sem meias palavras os soldados. Doravante, essa canção se tornaria o hino cívico das manifestações coletivas. Após o AI-5 o próprio autor, execrado e caçado pelo Exército, seria forçado a emigrar.
O advento do tropicalismo em 1967-1968 traria mais água para o moinho, com outras canções levantando a bandeira da transgressão. Como as de Caetano Veloso: Enquanto Seu Lobo Não Vem; Divino Maravilhoso; Alegria, Alegria; Tropicália. E as de Gilberto Gil: Domingo no Parque, Geleia Geral, Miserere Nobis, e seu sarcástico adeus partindo para o desterro – Aquele Abraço.
Surgem inúmeras composições alusivas ao amordaçamento, dentre as quais sobressai uma do pior período, Pesadelo (1972), de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, verdadeira ode à tenacidade no inconformismo: “Você corta um verso, eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto”.
Essas canções exemplares subsistiram, como tantas outras afora as aqui examinadas, como marcos históricos de um momento candente, em resposta ao golpe e a suas consequências, que, como se viu, atingiram as diferentes artes de modos também variados.
As produções artísticas passadas em revista acima permanecem como monumento ao flagelo que é uma ditadura. É típico da tirania, afora a panóplia de males de que se faz portadora, baixar uma mortalha sobre as artes, sufocando a criação e acossando os impulsos da invenção. É só quando ela cessa e a liberdade volta a pairar sobre a sociedade civil que novamente reina o livre espírito de experimentação, necessário para que o arbítrio e a força bruta não prevaleçam.
Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP 
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MEU 1º DE ABRIL DE 1964 - Frei Betto

Frei Betto

Na data do golpe militar, eu participava em Belém (PA) do congresso latino-americano de estudantes. Nunca havia vivido um golpe e, muito menos, uma ditadura. Meu pai, no entanto, sofrera sob o Estado Novo de Vargas, padecera prisão, e se vira obrigado a deixar o Rio e retornar a Minas ao assinar o Manifesto dos Mineiros.
Na capital paraense as notícias chegavam confusas e difusas. Pelas ruas, viaturas militares. Lideranças estudantis de outros países do Continente, já acostumadas a quarteladas, preferiram dissolver o congresso. Foi o salve-se quem puder...
Como membro da direção nacional da Ação Católica, eu estava hospedado na residência do arcebispo Dom Alberto Ramos, a convite de seu bispo auxiliar, Dom Milton Pereira. Este era progressista; o outro, conservador.
Na noite do 1º de abril, vi na TV o arcebispo dar loas à Virgem de Nazaré por livrar o Brasil do comunismo, e sugerir que entre seu clero havia quem sofresse influência marxista... Dom Milton aconselhou-me buscar refúgio fora dali.
Fui para a casa de Lauro Cordeiro, militante da JEC (Juventude Estudantil Católica). Ali, de ouvidos colados ao rádio, tentávamos avaliar o que ocorria no Sudeste do país. Jango fora deposto e buscara exílio no Uruguai. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumira a presidência da República sob tutela dos militares. Estes impunham novas eleições presidenciais a 11 de abril, pelo voto apenas de membros do Congresso Nacional que ainda não haviam sido cassados.
Mas... cadê a resistência de toda aquela multidão que aplaudira Jango no megacomício de 13 de março, no Rio? E a militância do Partidão, onde se enfiara? A esquerda não bradava ser capaz de mobilizar milhares de trabalhadores em caso de ameaça de golpe? Por que as tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho viera de Minas ao Rio sem se deparar com nenhum empecilho?
Nossos sonhos libertários se derretiam como os saborosos sorvetes da Tip Top, a mais famosa sorveteria da capital paraense. Após nove dias esperando a poeira baixar, decidi retornar ao Rio, onde morava.
Minha passagem aérea tinha sido cedida por Betinho, então chefe de gabinete do ministro da Educação, Paulo de Tarso dos Santos. Deparei-me com a agência da Varig repleta de pessoas afoitas por viajarem. Ao ser atendido, fui informado de que “estão canceladas todas as passagens de cortesia emitidas pelo governo anterior”. Sem dinheiro, me senti desamparado.
Na capa da passagem (outrora os bilhetes aéreos vinham encadernados) havia o carimbo de “Cancelado”. Rasguei a capa e estendi-a ao funcionário que avisava não ter mais assento vago em voos diretos para o Rio, a menos que o passageiro fizesse escala no Recife. Consegui embarcar.
Cheguei à capital pernambucana a 10 de abril, dia da posse de Dom Helder Camara como arcebispo de Olinda e Recife. Ele havia sido o responsável pela minha transferência de Minas para o Rio e cuidava da manutenção do apartamento das direções da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica).
Talvez por captar minha aflição, Dom Helder, após a missa de posse, deixou a recepção por alguns minutos para ouvir o relato do que eu presenciara em Belém. Em seguida, embarquei para o Rio, tomando assento ao lado de Dom Cândido Padin, bispo auxiliar do Rio e assessor nacional da Ação Católica.
Ao aterrissar no aeroporto Santos Dumont, o piloto avisou que todos deveriam permanecer a bordo, pois a Polícia Federal entraria para conferir a identidade de cada passageiro. Passei a Dom Padin todos os documentos do congresso de estudantes, temendo que fossem considerados subversivos. Ele os escondeu dentro do hábito beneditino.
Ao ingressar na aeronave, os policiais avistaram a figura episcopal: “O bispo pode desembarcar”, disseram. Todos os demais fomos identificados e revistados. Desembarquei ileso.
Na madrugada de 5 para 6 de junho de 1964, o apartamento da direção da Ação Católica foi invadido por agentes do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Fomos todos arrastados para o Comando Naval, no centro do Rio, e depois encarcerados no quartel dos fuzileiros navais, na Ilha das Cobras.
A ditadura me atingira na pele, pela primeira vez, para mais tarde me prender por quatro anos (1969-1973) e cassar por dez meus direitos políticos.

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.---------------------------------------------------------------
Quer saber o que o Chico fazia durante os anos de ditadura?

Lê o texto emocionante que ele escreveu, por ocasião dos 50 anos do golpe: http://bit.ly/50AnosdoGolpe


#DitaduraNuncaMais
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A ditadura em mim, seus nós em nós    Chico Alencar  Chico Alencar

O passado não conhece o seu lugar: ele teima em aparecer no presente (Mário Quintana)

Todos somos originários de geração biológica e cultural, involuntária, não escolhida. Dou graças a Deus pela minha, sertaneja. Sou filho de um piauiense de Alto Longá, o velho ‘seu’ Alencar (1901/1963), jornalista e servidor do Ministério da Agricultura, e de ‘dona’ Nina, apelido de Jacintha (1914/2012), professora nascida em Santa Rosa de Viterbo, interior de São Paulo. Chegado ao mundo na metade do século passado, represento a transição do Brasil rural para o urbano: carioca da Tijuca, mas com raízes fundas na roça, no país dos grotões, do amanho da terra e da vida pacata das pequenas cidades, que até hoje me fascinam. É que meu pai, retirante da falta de perspectivas do Nordeste, “mala de couro forrado com pano forte, brim caqui” (Caetano Veloso), veio tentar a vida na então capital da República. E minha mãe, que o conheceu em férias numa “estação de águas”, como se dizia na época (em Araxá, Minas Gerais), topou a nova vida de casada longe de seu pequeno burgo, vindo para o Rio de Janeiro.

O menino Chico, ao lado da irmã

Todos temos uma geração histórica e política, biográfica, nem sempre escolhida, mas na qual podemos ter alguma interferência. Eduardo Galeano ensina: “somos o que fazemos e, sobretudo, o que fazemos para mudar o que somos”. Adolescente, minha consciência mais ampla do mundo, já órfão de pai, foi sendo forjada no período trevoso da Ditadura. Aluno do Colégio Marista São José, no antigo ginásio, a ‘estufa’ ideológica onde formei minha primeira percepção racional das coisas era conservadora. O temor da ‘República Sindicalista’ era proclamado por professores e pela própria instituição escolar, além das preocupações que ouvia no ambiente familiar.
É certo que a moldura cristã sempre impunha, também, um sentido de solidariedade e uma preocupação com os outros, sobretudo os ‘deserdados da sorte’. “Vidas secas” e outros livros de Graciliano Ramos (1892/1953) e José Lins do Rego (1901/1957), alguns deles com dedicatória a meu pai, traziam-me a desigualdade do país e a dor do mundo. Talvez isso tenha ajudado a que minha trajetória tenha sido semelhante à de muitos jovens da pequena burguesia urbana da época: de potencial reacionário a progressista.

Chico, criança pequena, e um amigo que morreu precocemente

A figura política de proa, que me impressionava pela oratória e pela inteligência, embora eu não entendesse quase nada do que ele dizia, era Carlos Lacerda. Lembro-me de um único querido colega, Lucimar Brandão Guimarães, que tinha ideias de esquerda. Eu, intoxicado pela propaganda dominante na classe média, misturava tudo. Um dia, de brincadeira, escrevi no caderno de Lucimar (gostava de me sentar ao lado dele por sabê-lo de inteligência acima da média): “fora os nazistas!”. Ganhei do colega uma ‘aula’ explicando a diferença entre o nacional-socialismo de Hitler e o comunismo (de Stálin, vá lá…)
Lucimar foi um dos primeiros “amigos presos, sumidos assim, pra nunca mais” (Gilberto Gil), pelo regime que se implantou. Golpe militar, mas também com adesão de setores da sociedade civil. Foi este apoio que me levou, à época, a recortar e colar, desta vez no meu próprio caderno, a capa de um folheto especial da Seleções do Reader´s Digest, com a bandeira brasileira tremulando: “a Nação que se salvou a si mesma”. Em pouco tempo comecei a ficar intrigado com fatos obscuros: se a intervenção militar fora feita para ‘salvar a democracia’, por que todos os Atos Institucionais editados a partir dali restringiam as liberdades democráticas?

O conservador Carlos Lacerda: propaganda dominante

Em pouco tempo também aprendi que golpe, na política, é usar da força armada e tomar o poder, desrespeitando as regras do jogo, sem participação da maioria do povo. Revolução é diferente: embora ela quebre normas institucionalizadas, resulta de intensa e tensa presença popular. Não há revolução sem povo. Já o golpe se dá contra o povo e, em geral, sem que ele perceba bem o que está acontecendo. Foi com essa compreensão de menino curioso que comecei a transitar do universo conservador, da direita, para a visão igualitarista e a percepção das injustiças sistêmicas, da esquerda.
Maduro, graças à vida e aos livros, descobri que ao longo da nossa História tivemos muitos golpes e nenhuma revolução, no sentido pleno do termo. A História brasileira é de uma recorrente ‘transição intransitiva’, desde o (des)cobrimento, que para os povos nativos significou o início de sua dizimação. Nossa independência foi liderada por um príncipe português, e seu caráter de não-ruptura é verificável até na famosa frase que D. João VI. às vésperas de regressar para sua terrinha, teria dito a seu filho: “Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti, que há de me de respeitar, do que para qualquer desses aventureiros”.
O conselho do rei luso de regresso aludia aos republicanos revolucionários de ‘nuestra America’. Nossa República foi proclamada tardiamente por um admirador de D. Pedro II e o ‘governo do povo’ que se seguiu era o do pacto oligárquico. A chamada Revolução de 1930 foi feita “antes que o povo a fizesse”, no dizer do presidente da província de Minas, Antonio Carlos. O Estado Novo de 1937, suprimindo a ordem constitucional instaurada três anos antes, inspirava-se na experiência totalitária dos regimes em ascensão da época, na Alemanha, Itália, Portugal e, depois, Espanha.
O golpe de 1º de abril de 1964 — e não “Revolução Redentora de 31 de março” — nunca se assumiu como tal: na versão oficial, objetivava “salvar a democracia e livrar o país da corrupção”. O golpe civil-militar, com apoio direto dos EUA, como fartamente documentado, foi o último? Tomara, por todos os séculos vindouros.

Força armada, sem a maioria do povo: Golpe

Estou entre os que consideram que o único legado proveitoso da Ditadura foi a consolidação, pelos que a ela resistiram e para as gerações que não a sofreram, dos valores da cultura democrática radical: supressão das liberdades, censura, prisões políticas e morte nunca mais! Ditadura — tanto quanto seu subproduto, a tortura — nunca mais! Democracia pede mais democracia: participativa, ampliada, de alta intensidade, direta, real, substantiva. Bem mais que essa formal e banal que temos, das eleições bienais marcadas pela influência do poder econômico. Mas, com todas as suas limitações, ela é bem melhor que a Ditadura. Os jovens precisam conhecer essa quadra de truculência, para repudiá-la sempre.

Repudiá-la. Sempre.
Espanta esse meio século do golpe, espantamo-nos os sexagenários com a multidão que sequer era nascida quando dos comícios das “Diretas Já!”: passa o tempo, que tudo engole com sua boca devoradora. Mas não a nossa memória, que devemos preservar e cultivar. Há meio século — quem diria?! –, em um Primeiro de Abril duramente verdadeiro, o presidente João Goulart, que assumira há menos de três anos no lugar do renunciante Jânio Quadros, foi deposto por um movimento militar estimulado por “Marchas da Família” e apoiado pelos governadores dos três principais estados, Magalhães Pinto (MG), Lacerda (GB) e Ademar de Barros (SP), além da atenta supervisão do Departamento de Estado norte-americano, de prontidão para assegurar o êxito da operação. Por isso se diz, corretamente, que a intervenção de deposição do presidente Jango foi um golpe civil-militar. As reformas de base, os direitos dos pobres, a liberdade artística, a soberania nacional sofreram um violento ataque.
O governo dos EUA acantonara navios de guerra no nosso litoral — como previa a “Operação Brother Sam” — e os golpistas iniciaram um longo domínio sobre o país. Os generais eram impostos sob a farsa das ‘eleições indiretas’ em um Congresso castrado. E assim assumiram o posto máximo da Nação os ‘cinco estrelas’ Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo, com um breve intervalo de continuidade, gerido pela ‘troika’ de uma Junta composta pelos três ministros militares. Como me ensinou um antigo aluno do ensino médio (então 2º grau), o jornalista Luís Erlanger, em momento de aula em que eu, supondo-me sob espionagem, gaguejava para caracterizar essa nossa etapa histórica, iniciou-se um “período composto por subordinação” (a sagacidade do jovem salvou o professor de História, que não podia falar em Ditadura Militar naqueles anos de chumbo…).

Médici e Nixon: EUA assegurou êxito do golpe

Antes de ser professor, fui aluno não apenas do Colégio Marista, mas do Pedro II e do Aplicação da então UEG, depois UERJ, quando o estado da Guanabara deixou de existir, também por imposição do Estado de Exceção. No Pedro II, ao participar de uma passeata contra o regime, em 1966, dois anos depois do golpe, fui preso na Praça Tiradentes, ainda menor de idade. Nada de muito pesado: apenas uma noite, com dezenas de outros jovens, na estrebaria do Quartel da Polícia Militar, no centro do Rio. E o (in)devido ‘fichamento’, que me dava dor de cabeça nos concursos públicos em que tinha êxito, pois o famigerado atestado ideológico exigido para a efetivação custava a sair…
No CAP, reabrimos o Grêmio Estudantil e vivemos a ebulição de 1968. É viva a lembrança do dia 28 de março daquele ano, quando o estudante Edson Luís, 18 anos, foi morto pela Polícia Militar, ao participar de manifestação por melhor qualidade da refeição no Restaurante estudantil Calabouço. Fui direto para a Cinelândia e, emocionado, arranquei uma folha do meu diário e estampei, diante do corpo de Edson, no saguão do Palácio Pedro Ernesto, minha manuscrita indignação: “Ditadura mata!”. A “Passeata dos Cem Mil”, em junho, foi uma catarse. No ano seguinte, já em plena vigência do AI-5, “o golpe dentro do golpe”, o Grêmio foi fechado e eu, seu presidente, junto com outros membros da diretoria, como Cecília Leal de Oliveira, Ricardo Menezes e Claudio Smith, entre outros, recebemos o ‘bilhete azul’: se não procurássemos outra escola, as penas do Decreto 477 cairiam sobre nós, impedindo-nos de estudar durante três anos! O Colégio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, também na Tijuca, dirigido pelo judeu ‘comunista’ Moisés Genes, nos acolheu.

‘Ditadura Mata!’: estudantes velando o corpo de Edson Luis

Fui e sou aluno, como todos, da escola da vida — de padrão tão fascinante que, nela, ninguém fica na expectativa de ter férias… Ela me ensinou e ensina demais. Naquele período, as lições mais proveitosas vieram da Juventude Estudantil Católica, que procurava aproximar fé e vida, seguimento do Evangelho de Jesus Cristo e política. Ainda no governo de Castelo Branco, lá estava eu participando de meu primeiro encontro, orientado pelo padre Eduardo Koaik, falecido em 2012, como bispo emérito de Piracicaba (SP). Nosso livro de cabeceira era de um sacerdote e escritor francês, Michel Quoist (1918/1997): “Construir o homem e o mundo”. As edições mensais da Revista Paz e Terra, similar brasileira da francesa Esprit (da esquerda católica de lá), eram aguardadas com ansiedade intelectual quase mística, bem como o jornal “Folha da Semana”, editado por Otto Maria Carpeaux (1900/1978), antecessor do “Opinião”, “Movimento” e “Pasquim”, para o qual cheguei, mais tarde, já formado, a colaborar, com artigos sobre episódios tragicômicos da nossa História.
Através da JEC conheci muita gente bacana. E fui percebendo com mais clareza a força destruidora do regime de arbítrio e opressão. Daria para escrever um livro inteiro com histórias de amigos queridos que foram destruídos psicologicamente e/ou sequestrados, torturados e mortos. Além de Lucimar, Antonio Marcos de Oliveira e seu irmão Januário, Maurício Guilherme da Silveira, Luiz Raimundo de Carvalho, Antonio Carlos Morari — todos parceiros de copo e de cruz, de confidências sobre desilusões amorosas, expectativas futebolísticas e delírios de um novo mundo fraterno e solidário.


A perda mais violenta e marcante foi a do amigo Antonio Henrique Pereira Neto, padre e psicólogo, assessor de d. Helder Câmara (1909/1999), então arcebispo de Olinda e Recife — o “bispo vermelho”, segundo os militares, por quem torcíamos para que ganhasse o Prêmio Nobel da Paz (para o qual foi cogitado algumas vezes, com muita razão). Henrique, como o chamávamos, era a alegria em pessoa. Cáustico, nunca usava batina, e brincava quando, passeando pelo Rio conosco, cruzávamos com freiras de longos hábitos.
“- Quantas minissaias daria pra fazer com esse pano, irmã!”, provocava Henrique. Algumas sorriam, mas a maioria, lembro bem, franzia o cenho e acelerava o passo para se livrar daquele ‘herege’. Henrique também tinha uma forma peculiar de responder ao corriqueiro “como vai” dos amigos: “- Vivendo, acha pouco?”, dizia.
Não era pouco mesmo. Tragicamente sua existência foi breve demais. Em 1969, aos 28 anos, ele foi torturado, enforcado, baleado com três tiros na cabeça e um na garganta, arrastado e esquartejado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), quando saía da Faculdade onde lecionava, no Recife. Os trucidadores, amparados pelo sistema e pelo véu espúrio de uma interpretação equívoca da Lei de Anistia, ainda não foram plenamente identificados. Lembro-me, como se fosse hoje, da comovente missa em memória de Henrique, na Igreja de Santana, na Praça XI, no Rio. Repleta de jovens (e de agentes do regime, vigilantes), concelebrada por muitos padres, o canto final ecoava como um grito de denúncia contra a barbárie da Ditadura. E aviso profético de que o sangue derramado por nossos mártires não seria em vão: “Prova de amor maior não há/ que doar a vida pelo irmão!”

Antonio Henrique Pereira Neto: torturado e morto

A tragédia de Henrique e de tantos outros que iam sendo trucidados fez parecer ‘amenidade’ os embaraços que o regime impôs ao estudante universitário, ao enviar um agente espião para acompanhar as aulas na Universidade Federal Fluminense (UFF), e que me dedicou especial ‘amizade’ para, na verdade, mapear os trabalhos da igreja e da VAR (Vanguarda Armada Revolucionária) Palmares — da qual fui considerado base de apoio logístico, como soube muito depois. Nesse disfarce, o agente infiltrado, que vivo procurando até hoje, disse que foi até “conhecer o belo trabalho pastoral da diocese de Olinda e Recife”!
Também assimilei como quase ‘normal’ a exigência ao professor aprovado no concurso público para lecionar no estado, que precisou adiar sua posse por sucessivos meses até conseguir o ‘atestado de bons antecedentes’ no Departamento de Ordem Política e Social, o famigerado DOPS. Sim, depois de ser sabatinado pelo temido inspetor Mário Borges. Sua total ignorância da História permitiu que eu o enrolasse com teorias a ponto dele, suponho, me considerar um educador prolixo e inofensivo, mais sub-ser-vivo que subversivo, mais para os irmãos Marx (que ele também desconhecia) que para o velho Marx… Afinal, o ‘atestado ideológico’ saiu para que eu pudesse exercer o ‘perigoso’ ofício de professor.

Professor, em 1979: ‘atestado ideológico’ no DOPS

Um ‘nada consta’ benevolente: minha breve história de vida, mesmo com pequeno potencial ofensivo, já estava devidamente registrada, e dela constavam muitos apontamentos, com ilustrações que iam dos cartazes na sala do grêmio do CAP a palestras que dei em Nova Iguaçu, nas igrejas da diocese de D. Adriano Hipólito (1918/1996), outro ‘bispo vermelho’. Na minha ficha também há menções à atuação no movimento de moradores, já na dita ‘abertura’ — eufemismo para classificar a transição controlada, pelo alto, intransitiva, do regime de força para esta nossa embrionária democracia. Soube disso quando os arquivos do regime foram, enfim, abertos.
Toda ditadura, quanto mais tirana seja, mais burra é. Foi a experiência de estupidez persecutória da ciência da História que me instigou a escrever, com Marcus Venício Ribeiro e Lúcia Carpi, o livro que se tornou quase ‘clássico’ do ensino médio e das séries iniciais de algumas faculdades, o ‘História da Sociedade Brasileira’ — também ele alvo de ‘recomendações’ de não adoção, pelo conteúdo ‘estimulador da luta de classes’, segundo autoritários e conservadores de todo o tipo.
O poder não era só militar, repressão pura e dura a quem divergisse. Ergueu-se um bloco baseado nas empresas multinacionais, que tiveram sua vida aqui enormemente facilitada; nas estatais, que garantiam preços subsidiados para os investimentos privados; numa burocracia político-administrativa que carimbava e vigiava; e numa produção do imaginário social, através dos controlados grandes meios de comunicação de massa, que exaltava ufanisticamente o ‘Brasil Grande’, o ‘país que vai pra frente’. A vida política ficou restrita ao bipartidarismo de ficção, com o partido do sim, o MDB, e o do sim senhor, a ARENA. É verdade que, para efeito externo, o MDB era oposição. Mas ai dos emedebistas que se “excedessem” no discurso: eram cassados, isto é, deixavam de exercer seus mandatos parlamentares por decisão do general de plantão. Página infeliz da nossa História!


E “passagem desbotada na memória de nossas novas gerações”, para seguir citando Chico Buarque e Francis Hime. Eles e muitos outros jovens de então, entre os quais me incluo, fomos formados nesse ambiente de repressão, censura e tortura. Os que “partiram fora do combinado”, tão precocemente, estão num cantinho sofrido da nossa memória, por terem revivido em suas breves existências a paixão e morte de Cristo. A mesma de tantas vítimas da resistência indígena, negra e popular no Brasil: nossos mártires. Nós sobrevivemos e superamos o medo, ainda que pagando com expulsão das escolas, prisão e exílio.
Outra escola da vida, de cujo ‘diploma’ muito me orgulho, foi o movimento comunitário, das Associações de Moradores. Sua pujança se deu já no declínio do regime, acompanhando os movimentos que clamavam por liberdades democráticas. Os ideólogos do autoritarismo deviam ficar atazanados: empurrados para dentro de suas casas, para ‘tocar sua vida’ privada, os cidadãos resgatavam a dimensão da vizinhança e da luta comum por equipamentos urbanos coletivos e políticas públicas adequadas de educação, saúde, saneamento básico, transportes, moradia. A Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro (FAMERJ), que também presidi, foi minha ‘universidade’ social e política. Ali se aprendia — como nas associações de moradores, até hoje — que nenhuma iniciativa governamental tem valor e enraizamento se não passar pelo crivo participativo dos seus usuários ou beneficiários. “Nada sobre nós, sem nós!” — o lema dos deficientes hoje vale, há tempos, para a cidadania em geral.
Tudo isso é passado e, às vezes, nem parece que éramos nós mesmos os protagonistas (melhor dizer os antagonistas) daqueles tristes momentos. Mas a cultura da aceitação, da passividade, do imobilismo que o golpe de 64 impôs ainda tem força no Brasil de hoje: o individualismo vale mais que os movimentos, a ditadura do consumo sufoca a criatividade, o capital financeiro continua decidindo nosso destino como nação, ter consciência política não é para as pessoas comuns e sim para os “entendidos”, na sociedade do espetáculo há mais “cidadania do aplauso” do que ativa e participativa. Millôr Fernandes (1923-2012), outro que colocou a força dos argumentos e da inteligência contra o argumento da força e da imbecilidade do poder, dizia que “cidadão neste país em que não há qualquer cidadania passou a significar só… cidade grande!”
Aos 25 anos da Constituição cidadã, ainda não se horizontalizou a cidadania no Brasil, e muitos dos seus artigos não desceram do papel para a realidade… Alguém já disse que, no Brasil, cumprir a lei é revolucionário.

‘O passado não conhece o seu lugar’

Quem não se lembra do passado corre o risco de revivê-lo. Revisitar acontecimentos históricos é reinterpretá-los, agregando em sua leitura os novos conhecimentos que adquirimos. “A história não é um campo de exatidões (…) As releituras são sempre positivas, porém devem ser rigorosas e a veracidade — não “a verdade” — testada e arguida”, lembra meu ex-aluno Francisco Carlos Teixeira da Silva, hoje renomado professor-doutor. A História é uma ciência aberta, sempre passível de novas análises. Há, porém, a permanência de valores que atravessam a trajetória da Humanidade, por serem fios condutores de avanços, em meio a sombras e luzes, passos adiante e retrocessos. Nada é linear, tudo é dialético.
No aniversário de meio século do golpe, assumo as palavras do amigo compositor Fernando Brant, que reagiu à ruptura política e institucional com a sensibilidade dos que são vocacionados à grandeza e dignidade humanas’: “os acontecimentos daqueles dias ainda estão claros na memória. Fechado no escuro do quarto, querendo fugir do mundo que me chegava pelo rádio, eu, pouco mais que um menino, chorava, como se fosse morte a viagem-fuga do Presidente Jango. Os anos passados, a maturidade e a visão diária da injustiça e do ódio, da opressão, da mentira e do medo me levam, agora, adulto, em nome da verdade e da História, a reafirmar o menino: as lágrimas derramadas em 64 continuam justas.
  • Chico Alencar é professor de História e deputado federal (PSOL/RJ)




Texto revisto e concluído em 31 de março de 2014
Fotos: Evandro Teixeira, Ricardo Moraes/Reuters, Folhapress, acervo pessoal e divulgação pela internet.

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