sábado, 28 de setembro de 2013

comportamento

O ativismo político faz bem ao mundo e a quem se mexe

Não é só consciência, é alto-astral. Uma pesquisa mostra que a participação política e social está entre os fatores que trazem felicidade às pessoas
por Adriana Cardoso publicado 23/09/2013 11:56
maurício morais/RBA
Sofia
“É importante que as pessoas comecem a se interessar por política”

A gente não sabemos escolher presidente/ A gente não sabemos tomar conta da gente/ A gente não sabemos nem escovar os dentes/ Tem gringo pensando que nóis é indigente/ Inútil/ A gente somos inútil. O rock irreverente da banda Ultraje a Rigor fez tanto sucesso, há quase três décadas, que acabou animando uma geração de adolescentes que mal sabia o que era canção de protesto – dada a ausência de então – a ir às ruas com a mesma irreverência. Uma camiseta com os dizeres “Já sei escovar os dentes, quero votar pra presidente” foi vista pela primeira vez num comício das Diretas em Belo Horizonte e tornou-se hit nas manifestações que tomaram o país. Na ocasião, não era incomum os jovens fazerem a própria arte das camisetas com silkscreen ou pintá-las a mão para dar seu recado.
Também não é incomum, nas imagens de pessoas em movimento, identificar uma aura de energia e de alto-astral. Como que dizendo: “Se mexer para mudar o estado das coisas faz bem”. O engajamento político não é somente um vetor importante na promoção de mudanças sociais, mas também um dos fatores que podem fazer as pessoas mais felizes. É o que mostram os dados do World Happiness Database, em Roterdã, na Holanda, que coletou informações de estudos de diversos países para mensurar o que traz felicidade às pessoas ou, melhor ainda, quais mudanças podemos fazer em nossa vida para nos tornarmos mais felizes.
O estudo, divulgado em julho passado pela BBC Magazine, coloca o engajamento social numa posição tão importante para a satisfação pessoal como ter uma relação amorosa longa e estável, ser ativo nas horas vagas, sair para jantar de vez em quando e tomar um chopinho com os amigos. Ah, aos machistas de plantão, o levantamento também revela que os homens tendem a ser mais felizes em um ambiente no qual as mulheres estão em pé de igualdade.
O diretor do Database e professor da Erasmus University de Roterdã Ruut Veenhoven diz à BBC Magazine que os dados coletados ao redor do mundo mostram que ter uma vida socialmente ativa e participativa é mais eficiente para trazer felicidade do que traçar metas. Segundo o professor, estabelecer  objetivos e segui-los de maneira obsessiva pode levar o indivíduo a ser mais angustiado.
Três países latino-americanos estão na lista dos dez mais felizes, em termos de satisfação geral com a vida: Costa Rica (o primeiro), México (o sétimo) e Panamá (o último). As demais posições são distribuídas entre países europeus (todos os nórdicos, onde as pessoas são muito ativas socialmente) e o Canadá.
A pesquisa ajuda a explicar o que move diferentes gerações de ativistas. Como a recepcionista Bruna de Souza Lopes, de 27 anos, que tinha acabado de voltar para São Paulo, após quatro anos morando em Minas Gerais, quando os protestos começavam a pipocar. Frequentadora das redes sociais, juntou um grupo de amigos e foi. A mãe de Bruna, a esteticista Liliane Aparecida de Souza Lopes, de 46 anos, foi da geração cara-pintada. Levada pela sogra, Margarida, participara dos protestos pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
À época, Liliane tinha quase a idade da filha hoje. Ela, a filha, a sogra e o marido Clodoal­do moram no Jardim Fraternidade, entre o Capão Redondo e o Jardim Ângela, no extremo sul da capital paulista. E, a despeito da vida difícil na periferia, consideram-se felizes, o que dá para notar na empolgação com que falam de política – assunto, aliás, sempre discutido em casa. Era a primeira vez que Bruna participava de uma manifestação. Nem foi a redução da passagem de ônibus que a motivou. Foi “pelas outras coisas” e, especialmente, porque aquele momento lhe dava uma sensação de pertencimento. “Gostei de participar, me senti importante. Vivemos numa democracia e devemos lutar por nossos ideais”, assinala. Faz tempo que Liliane marchou pela saída de Collor, e ainda lembra muito bem. “Estava um dia muito chuvoso, mas havia um mar de gente nas ruas. Ficou marcado.”
Embora nunca tivesse ido às ruas, o ativismo de Bruna começou quando ela trabalhou como recepcionista num hospital em Minas. “Comprei muita briga com médico que fazia corpo mole para atender pacientes.”
A psicóloga Ana Lúcia da Silva pondera que a ida às ruas é importante por ser impulsionada “por um desejo de mudança”, mas a sensação de felicidade vai depender das respostas. “A experiência de se sentir fazendo parte de algo maior pode trazer uma satisfação duradoura ou não, dependendo da resposta efetiva às necessidades individuais e coletivas”, diz a terapeuta do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo.

Sensação de presença

Wesley Mendes Souza, de 17 anos, foi a dois protestos – um no Capão Redondo, próximo de onde mora, e outro na Avenida Paulista, na companhia da prima Bruna. Embora consuma quatro horas do seu dia dentro de ônibus, trem e metrô, ele viu uma ocasião de expressar insatisfação. “Além do transporte público, precisamos de melhorias na saúde, mais vagas em creches e mais oportunidades para os jovens.”
Estudante do 1º ano do ensino médio numa escola pública, Wesley sente na pele os efeitos do abismo de oportunidades. Ele mora com a mãe e a irmã numa casa de quatro cômodos na região do Jardim Ângela, onde pagam R$ 750 de aluguel. Filho de pais separados, passou muito de sua adolescência em casa e sozinho. Há pouco mais de três meses, por meio do programa Jovem Aprendiz, conseguiu uma vaga na área de contabilidade de um hospital no bairro da Barra Funda, na zona oeste. Ganha menos de um salário mínimo por mês e ajuda em casa. A rotina começa às 6h e termina por volta da meia-noite. Mas não reclama – abraça a oportunidade. Não foi à toa que os protestos trouxeram a Wesley, como ele afirma, “maior consciência política” e o fizeram sentir-se parte mais ativa da sociedade.
O advogado Aylton dos Santos Lira, de 36 anos, conta que nunca viu algo parecido durante quatro anos em que morou na Alemanha. “Há anos eu sonhava com isso”, diz ele, que não participou das manifestações de 20 anos atrás por achar que havia uma manipulação de parte da mídia. Na ocasião, em vez do verde-amarelo, adotou o preto para protestar.
Lira esteve na manifestação de 13 de junho, quando a polícia militar do estado de São Paulo “desceu o sarrafo” em quem era manifestante e em quem não era. Morador das imediações da Rua Maria Antônia, na região central, ele foi um dos que ajudaram a socorrer a repórter do jornal Folha de S.Paulo Giuliana Vallone, ferida num olho com um tiro de bala de borracha disparado por um dos policiais da Tropa de Choque. “Eu sonhava com isso, sem partido, sem sindicato (liderando as marchas). Quando vi a multidão, fiquei tão emocionado que comecei a chorar.” Desde que retornou, observa o brasileiro mais engajado, participativo e consciente.
O professor Edson Passetti, do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, coordena o Núcleo de Sociabilidade Libertária (NU-Sol) na universidade. Para ele, quem acredita que essa é a geração do tédio terá de rever seus conceitos. “O brasileiro não é tonto, não é só cordial e, como qualquer pessoa, pode se manifestar de maneiras surpreendentes”, avalia, enfatizando que o que vem ocorrendo está tirando muita gente de sua zona de conforto.

Que tal um rumo?

Mas um pouco de “rumo” para sair da acomodação não faz mal a ninguém, na opinião da argentina Sofia Rosseaux, de 25 anos. Tinha 13 no começo dos anos 2000, quando sua família veio para o Brasil para fugir do “coice” do então ministro da Economia do governo de Carlos Menem, Domingo Felipe Cavallo, que afundou o país numa crise brutal. Filha de mãe brasileira e pai argentino, a arte-educadora já participou de várias manifestações na vida, mas afirma que só quando há organização e propostas claras pelos movimentos. Tomou parte das jornadas de junho por concordar com o mote do Movimento Passe Livre e avaliar como “ruim e absurdamente caro” o transporte público.
“Fiquei preocupada com a proporção que tomou, porque havia ali pessoas que, claramente, estavam entendendo aquela situação de maneira equivocada”, comenta. Mas não acha que seja de todo ruim, “pois é importante que as pessoas comecem a se interessar por política”. E, nesse aspecto, ela observa que na Argentina discute-se política o tempo inteiro, que as pessoas acompanham o que acontece.
O recente fenômeno agitante não foi exclusividade paulistana. Surpreendeu dezenas de cidades em todo o país, com momentos de ebulição em grandes regiões metropolitanas, como Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. Aos 34 anos, a médica Luciana Villela nunca havia participado de protestos quando decidiu engrossar o coro dos descontentes na Praça Sete de Setembro, na capital mineira. Achou “legal”, mas ficou preocupada, pois acredita que a ignorância de alguns pode transformá-los em “massa de manobra”.
Na opinião do professor Edson Passetti, os protestos evidenciaram quem é quem dentro das expressões políticas brasileiras. Para ele há fascistas, sim, como sempre houve em atividades desse tipo. Mas há de se ter cuidado ao classificar determinados atos como vandalismo puro e solto. “Aquela farra do ‘casamento da dona Baratinha’ foi surpreendente!”, diz, lembrando um protesto do dia 13 de julho em frente ao Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. A festa de casamento de Francisco Feitosa e Beatriz Barata, para mil convidados e a um custo estimado em R$ 3 milhões, ficou conhecida nas redes como o “Casamento de dona Baratinha”. O avô da noiva, Jacob Barata, é conhecido como “rei do ônibus”.
Lembrada pela beleza, pela alegria e também pela violência, agora a capital fluminense ficará marcada pelas jornadas que continuam a todo o vapor. É o que acredita o estudante Raphael Godói, de 16 anos. Ele é um dos fundadores do Fórum de Lutas contra o Aumento da Passagem dos transportes públicos e ativista social há muito tempo. Participou do Dia do Basta à Corrupção e do Ocupa Cabral, entre outras ações, e lembra que, no começo, enfrentou dificuldades para atrair colegas às suas causas. Por isso, acreditava ter nascido em época errada.
Morador da Barra da Tijuca, área nobre na zona sul carioca, estuda em escola particular onde a mãe trabalha e anda menos de ônibus porque dá pra ir a pé. Mesmo assim, o fórum não esfria os protestos. “Não tinham esperança de que poderiam provocar mudanças. Hoje, essa esperança reapareceu”, avalia. Talvez por acreditar que essa geração fosse marcada por “desesperança” e apatia, muita gente foi pega de calças curtas.
Até o papa Francisco, durante a visita ao Brasil, disse que jovem que não protesta não lhe agrada. Sua patrícia Sofia, portanto, está aprovada. Para ela, manifestações desse tipo ajudam “a reconstruir um sentimento coletivo”, e a sensação de felicidade, como apontada na pesquisa da universidade holandesa, está no potencial de mudança não só, ou não exatamente, no país, mas em cada indivíduo. Pelo menos Raphael Godói, que quis tanto ter nascido em outra época, já se sente bem melhor exatamente onde está. “Está tudo lindo!”, suspira.

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