domingo, 29 de junho de 2014

Eucaristia fraterna e subversiva - dom Pedro Casaldáliga

Aos 86 anos, dom Pedro Casaldáliga segue enfrentando ameaças, o sistema político, o agronegócio, os impérios. Em nome da esperança, se apresenta como soldado de uma causa invencível 
 Fonte: Rede Brasil Atual
por Sônia Oddi e Celso Maldos publicado 20/06/2014 09:09, última modificação 20/06/2014 16:48
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“Por mi pueblo en lucha, vivo. Con mi pueblo en marcha, voy” (Joan Guerrero)
São Félix do Araguaia, nordeste mato-grossense, 10 de maio de 2014. Numa pequena capela, no fundo do quintal, uma oração inaugura o dia na casa do bispo emérito de São Félix, dom Pedro Casaldáliga. A simplicidade da arquitetura ganha força com o significado dos objetos ali dispostos.
No altar, uma toalha com grafismos indígenas. Na parede, um relevo do mapa da África Crucificada, um



Cristo rústico no crucifixo, uma cerâmica de mãe que protege seu filho com um braço e carrega um pote no



outro. No chão de cimento, bancos feitos de toras de madeira, que lembram aqueles de buriti, usados pelos Xavante, em uma competição tradicional, em que duas equipes se enfrentam numa corrida de revezamento, carregando as toras nos ombros, demonstração de resistência e força, qualidades de um povo conhecido por suas habilidades guerreiras. Cercada de plantas, a luz entra por todas as faces das tímidas e incompletas paredes. Nesse ambiente orgânico, assim como tem sido a vida de Pedro, os amigos se aninham para tomar parte da oração.
José Maria Concepción, companheiro de Pedro de longa data, e recém-chegado da Espanha, inicia a leitura:
“1795: José Leonardo Chirino, mestiço, lidera a insurreição de Coro, Venezuela, com índios e negros lutando pela liberdade dos escravos e a eliminação de impostos. 1985: Irne García e Gustavo Chamorro, mártires da justiça. Guanabanal, Colômbia.
1986: Josimo Morais Tavares, padre, assassinado pelo latifúndio. Imperatriz, Maranhão, Brasil”
Os martírios lembrados referem-se àquela data, 10 de maio. Inúmeros outros, centenas deles, são e serão lembrados ao longo de todo o ano, de acordo com a Agenda Latino-Americana. E continua: “2013: Ríos Montt, ex-ditador guatemalteco, condenado a 80 anos de prisão por genocídio e crimes contra a humanidade. A Comissão da Verdade calcula que ele cometeu 800 assassinatos por mês, nos 17 meses em que governou, depois de um golpe de Estado.”
O jovem padre Felipe Cruz, agostiniano, de origem pernambucana, conduz um canto, a reza do pai-nosso e a leitura de uma passagem da edição pastoral da Bíblia. O encerramento se dá com a Oração da Irmandade dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, escrita por dom Pedro, onde na última linha pode-se ler “Amém, Axé, Awere, Aleluia!”, em respeito à diversidade de crenças do povo brasileiro.
Em nome desse respeito, dom Pedro nunca celebrou uma missa na Terra Indígena Marãiwatsédé, dos Xavante, comunidade que desde sempre contou com o seu apoio na luta pela retomada da terra, de onde haviam sido deportados em 1968 e para onde começaram a retornar em 2004. “Se o bispo está aqui celebrando a missa, significa que nós estamos em pleno direito aqui. E, por orientação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e da igreja da Prelazia, ele, pessoalmente, não fez nenhuma celebração na reserva”, testemunha José Maria.
Por apoiar a luta quase cinquentenária dos povos originários daquela região de Mato Grosso, Pedro foi ameaçado de morte algumas vezes. Na última, no final de 2012, quando o processo de desintrusão (medida legal para efetivar a posse) dos fazendeiros e posseiros da TI (terra indígena) Marãiwatsédé avançava e se efetivava, decorrente da determinação da Justiça e do governo federal, ele teve de se ausentar de São Félix.
Perseguições, ameaças de morte e processos de expulsão do país têm marcado a trajetória de Pedro, que chegou à longínqua região do Araguaia, como missionário claretiano, em 1968, aos 40 anos. De origem catalã, ele nasceu em 1928 – e aos 8 anos teve sua primeira experiência com o martírio, quando um irmão de sua mãe, padre, foi assassinado quando a Espanha estava mergulhada em uma sangrenta guerra civil.
A Prelazia de São Félix, uma divisão geográfica da Igreja Católica, foi criada em 1969 e abrange 15 municípios: Santa Cruz do Xingu, São José do Xingu, Vila Rica, Santa Terezinha, Luciara, Novo Santo Antônio, Bom Jesus do Araguaia, Confresa, Porto Alegre do Norte, Canabrava do Norte, Serra Nova Dourada, Alto Boa Vista, Ribeirão Cascalheira, Querência e São Félix do Araguaia. Atualmente, conta com uma população estimada em 135 mil habitantes, uma área aproximada de 102 mil quilômetros quadrados e 22 chamadas paróquias.
Pedro, em meio às distâncias, encontrou um povo carente, sofrido, abandonado, à mercê das ameaças dos grandes proprietários criadores de gado. Os pobres do Evangelho, a quem havia escolhido dedicar a sua vida, estavam ali.
Em 1971, pelas mãos de dom Tomás Balduíno (que morreu em maio último, aos 91 anos) foi sagrado bispo da prelazia. A partir de 2005, quando renunciou, recebeu o título de bispo emérito.
Um dos fundadores da Teologia da Libertação, o seu engajamento nas lutas dos ribeirinhos, indígenas e camponeses incomodou os latifundiários e a ditadura. Ainda hoje, incomoda os homens ricos e poderosos do Centro-Oeste brasileiro.
A política dos incentivos fiscais, levada a cabo pelos militares, por meio da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), foi o berço do agronegócio. E também dos conflitos advindos da expropriação da terra das populações originárias, da exploração da mão de obra, do trabalho escravo e toda sorte de violências, que indignou o missionário Pedro e o fez escolher do lado de quem estaria.
“O direito dos povos indígenas são interesses que contestam a política oficial”, diz dom Pedro. “São culturas contrárias ao capitalismo neoliberal e às exigências das empresas de mineração,  das madeireiras. Os povos indígenas reivindicam uma atuação respeitosa e ecológica.”
Em plena ditadura, nos anos 1970, fundou, junto com dom Tomás Balduíno, o Cimi e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), como resposta à grave situação dos trabalhadores rurais, indígenas, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia. Ainda nesse período, em 1976, presenciou o assassinato do padre João Bosco Burnier, baleado na nuca quando ambos defendiam duas mulheres que eram torturadas em uma delegacia de Ribeirão Cascalheira (MT).
Pedro faz seções de fisioterapia algumas vezes na semana. Aos 86 anos, e com o Parkinson diagnosticado há cerca de 30, esse cuidado se faz necessário para minimizar os avanços do mal que provoca atrofia muscular e tremores. Ele segue disciplinadamente uma dieta alimentar, o que de certa maneira retardou, mas não cessou, segundo seu médico, o avanço da doença.
A disciplina se repete na leitura diária de e-mails, notícias, artigos, acompanhado mais frequentemente por frei Paulo, agostiniano,  que assim como dom Pedro tem sempre as portas abertas para moradores da comunidade e viajantes. Durante a visita da Revista do Brasil, por exemplo, há uma pausa para acolher Raimundo, homem alto, pardo, magro que, aflito, emocionado, de joelhos, pedia a sua bênção.
A casa é simples, de tijolos aparentes,
sem
acabamento nas paredes. Porém, tal como a capela no fundo do quintal, é plena de significados e ícones que atestam o compromisso com as causas humanas, de quem vive sob aquele teto.

Che, Jesus, Milton

No quarto, na salinha, na cozinha, no alpendre dos fundos, no escritório, um devaneio para os olhos e para o coração. Imagens de significados diversos: Che Guevara, Jesus Cristo, Milton Nascimento, padre João Bosco Burnier, dom Hélder Câmara, monsenhor Romero, Pablo Neruda. Textos de Martín Fierro, São Francisco de Assis, Joan Maragall, Exodus. Pôsteres da Missa dos Quilombos, da Romaria dos Mártires da Caminhada, da Semana da Terra Padre Josimo. Calendários da Guerra de Canudos, de operários no 1º de Maio. E ainda fotos, pequenas lembranças e artefatos populares, em meio a estatuetas de prêmios recebidos.
O seu compromisso com as causas populares extrapola as fronteiras do país. Em 1994, dom Pedro apoiou a revolta de Chiapas, no México, afirmando que quando o povo pega em armas deve ser respeitado e compreendido. Em 1999, publicou a Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba. Fala com convicção da importância da unidade latino-americana, idealizada por Simon Bolívar (1783-1830) e defendida pelo ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013).
“Eu dizia que o Brasil era pouco latino-americano, a língua comum dos povos castelhanos fez com que o Brasil se sentisse um pouco à parte do resto”, diz dom Pedro. “Por outro lado, o Brasil tem umas condições de hegemonia que provocava nos outros povos uma atitude de desconfiança. Hugo Chávez fez uma proposta otimista, militante, apelando para o espírito de Bolívar, com isso se conseguiu vitórias interessantes, como impedir a vitória da Alca.”
Ele recorda de um encontro com o ex-presidente brasileiro. “Quando Lula esteve na assembleia da CNBB, estávamos nos despedindo, ele se aproximou de mim e me deu um abraço. E eu falei, vou te pedir três coisas. Primeiro, que não nos deixe cair na Alca, segunda, que não nos deixe cair na Alca, terceira, que não nos deixe cair na Alca. Só te peço isso”, conta, em referência a Área de Livre Comércio das Américas, ícone do neoliberalismo.
“E realmente não entramos na Alca. Porque a América Latina tem de se salvar continentalmente, temos histórias comuns, os mesmos povos, as mesmas lutas, os mesmos carrascos. Os mesmos impérios sujeitando-nos, uma tradição de oligarquias vendidas. Tem sido sempre assim. Começavam com o império, o que submetia as oligarquias locais. Os exércitos e as forças de segurança garantiam uma segurança interesseira. Melhorou, inclusive os Estados Unidos não têm hoje o poder que tinham com respeito ao controle da América Latina. Somos menos americanos, para ser mais americanos.”

Esperança e diálogo

É preciso de todo jeito salvar a esperança, defende dom Pedro. “Insistir nas lutas locais, frente à globalização. Se somar as reivindicações, sentir como próprios, as lutas que estão acontecendo nos vários países da América Latina. El Salvador, Uruguai, Bolívia, Equador... Claramente são países muito próximos nas lutas sociais.”
Há tempos dom Pedro Casaldáliga não concede entrevistas pela dificuldade que tem encontrado em conciliar a agilidade do raciocínio com o tempo possível da articulação das palavras. A ajuda de José Maria, seu amigo e conterrâneo, foi fundamental para a compreensão das pausadas e esforçadas falas, enquanto discorria sobre assuntos por ele escolhidos.
Otimista  com a atuação do papa Francisco, ressalta que “ele fez gestos emblemáticos, muito significativos”. “A Teologia da Libertação se sentiu respaldada por ele. Tem valorizado as Comunidades Eclesiais de Base, com o objetivo de uma Igreja pobre para os pobres. Estimulou o diálogo com outras igrejas... Chama a atenção nele o diálogo com o mundo muçulmano e com o mundo judeu, e agora essa visita a Israel... Muito significativa. Desmantelou todo o aparato eclesiástico, seus colaboradores tiveram de se adaptar.”
Ele reconhece as limitações que o sistema político impõe à atuação do governo, que segundo dom Pedro tem “um pecado original”: as alianças. “Quando há alianças, há concessões e claudicações. Enquanto esses governos todos se submeterem ao capitalismo neoliberal teremos essas falhas graves. A política será sempre uma política condicionada. Tanto o Lula como a Dilma gostariam de governar a serviço do povo mesmo, mas as alianças fizeram com que os governos populares estivessem sempre condicionados”. Para ele, deve haver uma “atitude firme, quase revolucionária”, em relação a temas como saúde, educação e comunicação.
Morto em março do ano passado, o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez é lembrado com determinação pelo religioso. “Ele tentou romper, rompeu o esquema. Por isso, a direita faz questão de queimar, queimar mesmo, a Venezuela. Nos diários e noticiários, a cada dia tem de aparecer alguma coisa negativa da Venezuela”.

Direitos indígenas x ruralistas

Ele aponta a “atualidade” da causa indígena, e as ameaças que não cessam. “Nunca como agora, se tem atacado tanto. Tem várias propostas para transformar a política que seria oficial, pela Constituição de 1988, que reconhece o direito dos povos indígenas de um modo muito explícito. Começam a surgir propostas para que seja o Congresso quem defina as demarcações das terras indígenas, sendo assim já sabemos como será a definição. A bancada ruralista é muito grande...”, observa dom Pedro.
Por outro lado, prossegue, nunca os povos indígenas se organizaram como agora. E o país criou uma “espécie de consciência” em relação a essa causa. “Se querem impedir que haja uma estrutura oficial com respeito à política indígena, tentam suprimir  organismos que estão a serviço dessas causas. Isso afeta os povos indígenas e o mundo rural . Tudo isso é afetado pelo agronegócio, o agronegócio é o que manda. E manda globalmente. Não é só um problema do Mato Grosso, é um problema do país e do mundo todo. As multinacionais condicionam e impõem.
“A retomada da TI Marãiwatsédé é bonita e emblemática. Os Xavante foram constantes em defender os seus direitos. Quando foram expulsos, deportados – esta é a palavra, eles foram deportados –, seguiram vinculados a esse terreno, vinham todos os anos recolher pati, uma palmeira para fazer os enfeites. E reivindicavam sempre a terra onde estão enterrados nossos velhos. E foram sempre presentes”, testemunha. “Aqui, nós sempre recordamos que essa terra é dos Xavante, que esta terra é dos Xavante. Os moradores jovens, meninos, outro dia diziam – nossos vovôs contam que essa terra é dos índios, nossos papais contam que essa terra é dos índios.”
A essa altura, dom Pedro lembra de “momentos difíceis” em que o Cimi se vê obrigado a contestar certas ações do governo. “Quando se diz que não há vontade política pelas causas indígenas, eu digo que há uma vontade contrária ao direito dos povos indígenas, isso é sistemático. A Dilma, eu não sei se se sentisse um pouco mais livre, respaldaria as causas indígenas. Alguns pensam que ela pessoalmente não sintoniza com a causa indígena. Tem sido criticada porque nunca recebeu os índios. Faz pouco foi o primeiro encontro com um grupo. Todos esses projetos de Belo Monte, as hidrelétricas. Se ela tem uma política desenvolvimentista, ela tem de desrespeitar o que a causa indígena exige: em primeiro lugar seria terra, território, demarcação, desintrusar os invasores. Seria também estimular as culturas indígenas e quilombolas”, diz, sem meio-termo. “Se você está a favor dos índios, você está contra o sistema. Não adianta colocar panos quentes aí.”
Dom Pedro defende a presença de sindicatos, mas critica o movimento. “Eles são a voz dessas reivindicações todas dos povos indígenas, do mundo operário. Na América Latina, estiveram muito bem os sindicatos, ultimamente vêm falhando bastante. Foram cooptados. Quando se vê um líder sindicalista transformado em deputado, senador, ele se despede”, afirma, vendo a Via Campesina como uma alternativa, por meio de alianças de grupos populares em vários países.
“Daí voltamos à memória de Hugo Chávez, que estimulou essa participação”, observa. “De ordinário acontece que antes as únicas vozes que os operários tinham eram o sindicato e o partido. Nos últimos anos, tanto o partido como o sindicato perderam representatividade. Em parte foram substituídos por associações, alguns movimentos. Mas continuam sendo válidos. Os sindicatos e partidos são instrumentos conaturais a essas causas do povo operário, camponês.”
Para fazer campanha eleitoral, todo candidato operário a deputado, senador, tem de “claudicar” em algum aspecto, acredita dom Pedro.  “Por isso, é melhor que não se candidate. Por outra parte, não se pode negar completamente a função dos partidos e dos sindicatos. Não é realista, ainda continuam sendo espaços que se deve preencher.”
Lúcido, Pedro conclui a conversa lembrando a frase de um soldado que lutava contra a ditadura franquista na Guerra Civil Espanhola: “Somos soldados derrotados de uma causa invencível”.
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Descalço sobre a terra vermelha
  Maldos MINISSÉRIE
O ator catalão Eduard Fernández interpreta Dom Pedro no filme rodado no Brasil

A minissérie em dois capítulos de uma hora Descalço sobre a Terra Vermelha, baseada em livro homônimo do jornalista catalão Francesc (Paco) Escribano, é uma produção da TVE (Educativa da Espanha),  da TV3 da Catalunha, da produtora Minoria Absoluta, da TV Brasil e da produtora paulista Raiz Produções Cinematográficas. Descalço sobre a Terra Vermelha estreou na TV3 em março e está programada para ser exibida na TV Brasil no segundo semestre.
Trata da vida de dom Pedro Casaldáliga, desde sua chegada ao Brasil até sua visita ad Limina ao Vaticano, quando se apresentou ao Papa João Paulo II e ao conservador cardeal Joseph Ratzinger, então à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, herdeira da Santa Inquisição, onde deveria explicar sua ação teológica a favor dos pobres e dos oprimidos.
O filme, uma belíssima e apurada produção, contou com a participação de mais de mil figurantes de povoados e das cidades de Luciara e São Félix do Araguaia, locais onde foram construídas verdadeiras cidades cenográficas, representando como eram esses lugares nos idos dos anos 1970.
Dirigido por Oriol Ferrer, tendo Eduard Fernández, premiado ator catalão, no papel de Casaldáliga, contou com um elenco de ótimos atores espanhóis e brasileiros.
Rodado como uma espécie de western teológico, retrata com grande força e sensibilidade a violência e tensão existentes, ainda  hoje, nos conflitos entre latifundiários, invasores de terras indígenas, posseiros e a ação pastoral da Prelazia de São Félix que, tendo dom Pedro à frente, desde sempre esteve ao lado dos despossuídos.
De acordo com a descrição que aparece no site da Minorita Absoluta, a série combina ação e misticismo “no cenário exuberante de Mato Grosso, em contraste com a paisagem humana e social chocante”. A história de Pedro Casaldáliga se desenvolve “em torno de valores universais”, no contexto da teoria filosófica e teológica da libertação e da situação geopolítica dos anos 1970, na ditadura brasileira. O jornalista e produtor executivo Francesc Escribano salienta que a produção se tornou “seu coração” para contar “uma história notável de um catalão universal”.
Durante o making of, impressionou como a historia e principalmente  o próprio dom Pedro teve impacto na vida de todos os envolvidos na produção. Confirma a impressão que tive desde a primeira vez que viajei com ele, há mais de 30 anos: estar na sua presença é sentir-se na presença de um espirito muito elevado; sem exagero, um verdadeiro santo do povo.
(Celso Maldos)

quinta-feira, 26 de junho de 2014

José Pacheco: “Brasil despreza seus educadores geniais” & Outros textos selecionados



"Nestes últimos dias,  na formação continuada como parte do Pacto Nacional do Ensino Médio, realizada na UFS, alguns temas e discussões me remeteram a estes textos. O primeiro “ A Escola dos Meus Sonhos” eu tive contato há alguns  anos atrás, os demais há pouco tempo. 


Em todos os textos, a certeza de que outra educação não apenas é possível, como necessária e está sendo realizada, mesmo que  esta outra maneira de educar esteja reduzida a um numero menor de pessoas  e de lugares, mesmo sem ser noticia de destaque no noticiário da imprensa e com poucos pesquisadores acadêmicos interessados.


Amplos setores da  esquerda, com  o seu posicionamento contrário a  escola pedagógica  conhecida como Escola Nova, consideradas burguesa, baseada nos chamados métodos ativos de aprendizagem,  também deram sua contribuição para que estas experiências não fossem ou não sejam consideradas com o valor que merecem.  Na feliz observação da professora Maria Isabel Ladeira, ao comentar a experiência dos Colégios Vocacionas,  após a exibição de um vídeo-documentário apresentado na  tarde desta quinta-feira, 26 de junho de 2014. O que também percebi,  desde que comecei a experiência docente

(Zezito de Oliveira - Educador, produtor cultural e gestor de conteúdo deste blog)

Jose-Pacheco
Criador da Escola da Ponte, em périplo pelo país, afirma: “além de Paulo Freire, outros brasileiros poderiam revolucionar ensino; burocracia estatal os sufoca”

Por Simone Harnik, no Uol Educação
Idealizador da Escola da Ponte, em Portugal, instituição que, em 1976, iniciou um projeto no qual os estudantes aprendem sem salas de aula, divisão de turmas ou disciplinas, o educador português José Pacheco afirma que as escolas tradicionais são um desperdício para os estudantes e os professores.
“O que fiz por mais de 30 anos foi uma escola onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a melhor escola nas provas nacionais e nos vestibulares”, diz. “Dar aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que requer muito estudo, muito tempo e muita reflexão.”
Aos 58 anos, o
professor
que classifica autores como Jean Piaget como “fósseis”, fez uma peregrinação pelo país. No trabalho de prospecção de boas iniciativas em colégios brasileiros, Pacheco só não conheceu instituições do Acre e do Amapá e diz ter somado cerca de 300 voos no último ano.
Com a experiência das viagens, escreveu dois livros de crônicas: o “Pequeno Dicionário de Absurdos em Educação”, da editora Artmed, e o “Pequeno Dicionário das Utopias da Educação”, da editora Wak. Aponta ainda que a educação brasileira não precisa de mais recursos para melhorar: “O Brasil tem tudo o que precisa, tem todos os recursos e os desperdiça”. Veja a entrevista:
Em suas andanças pelo país, qual o absurdo que mais chamou sua atenção?
O maior absurdo é que a educação do Brasil não precisa de recursos para melhorar. O Brasil tem tudo o que precisa, tem todos os recursos e os desperdiça.
Desperdiça como?
Pelo tipo de organização. A começar pelo próprio Ministério da Educação. Eu brinco, por vezes, dizendo que o melhor que se poderia fazer pela educação no Brasil era extinguir o Ministério da Educação. Era a primeira grande política educativa.
Qual o problema do ministério?
Toda a burocracia do Ministério da Educação que se estende até a base, porque a burocracia também existe nas escolas, à imagem e semelhança do ministério. No próprio ministério, o contraste entre a utopia e o absurdo também existe. Conheço gente da máxima competência, gente honesta. O problema é que, com gente tão boa, as coisas não funcionam porque o modo burocrático vertical não funciona. É um desperdício tremendo.
Como resolver?
Teria de haver uma diferente concepção de gestão pública, uma diferente concepção de educação e uma revisão de tudo o que é o trabalho.
O que teria de mudar na concepção de educação?
O essencial seria que o Brasil compreendesse que não precisa ir ao estrangeiro procurar as suas soluções. Esse é outro absurdo. Quais são hoje os autores que influenciam as escolas? Vygotsky [Lev S. Vygotsky (1896-1934)], Piaget [Jean Piaget (1896-1980)]? Não vejo um brasileiro. Mas podem dizer: “E Paulo Freire?”. Não vejo Paulo Freire em nenhuma sala de aula. Fala-se, mas não se faz.
Identifiquei, nos últimos anos, autores brasileiros da maior importância que o Brasil desconhece. Esse é outro absurdo. Quem é que ouviu falar de Eurípedes Barsanulfo (1880-1918)? De Tomás Novelino (1901-2000)? De Agostinho da Silva (1906-1994)? Ninguém fala deles. Como um país como este, que tem os maiores educadores que eu já conheci, não quer saber deles nem os conhece?
Há 102 anos, em 1907, o Brasil teve aquilo que eu considero o projeto educacional mais avançado do século 20. Se eu perguntar a cem educadores brasileiros, 99 não conhecem. Era em Sacramento, Minas Gerais, mas agora já não existe. O autor foi Eurípedes Barsanulfo, que morreu em 1918 com a gripe espanhola. Este foi, para mim, o projeto mais arrojado do século 20, no mundo.
O que tinha de tão arrojado?
Primeiro, na época, era proibida a educação de moços e moças juntos. Só durante o governo Getúlio Vargas é que se pôde juntar os dois gêneros nos colégios. Ele [Barsanulfo] fez isso. Ele tinha pesquisa na natureza, tinha astronomia no currículo oficial. Não tinha série nem turma nem aula nem prova. E os alunos desse liceu foram a elite de seu tempo. Tomás Novelino foi um deles e Roberto Crema, que hoje está aí com a educação holística global, foi aluno de Novelino.
Por que o senhor fala desses autores?
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Digo isso para que o brasileiro tenha amor próprio, compreenda aquilo que tem para que não importe do estrangeiro aquilo que não precisa. É um absurdo ter tudo aqui dentro e ir pegar lá fora.
Qual foi a maior utopia que o senhor viu?
O Brasil é um país de utopias, como a de Antônio Conselheiro e a de Zumbi dos Palmares. Fui para a história, para não falar em educação. Na educação, temos Agostinho da Silva, que é um utópico coerente, cuja utopia é perfeitamente viável no Brasil. Ou seja, é possível ter uma educação que seja de todos e para todos. O Brasil, dentro de uns 30 ou 40 anos, será um país bem importante pela educação. São os absurdos que têm de desaparecer, para dar lugar à concretização das utopias. Acredito nisso, por isso estou aqui.
 Os professores são resistentes às mudanças? 
Os professores são um problema e são a solução. Eu prefiro pensar naqueles professores que são a solução, conheço muitos que estão afirmando práticas diferentes.
Práticas diferentes como a da Escola da Ponte?
Não são “como”, mas inspiradas, com certeza. São práticas que fazem com que a escola seja para todos e proporcione sucesso para todos.
Dentro da escola tradicional, onde ocorre o desperdício de recursos?
Se considerarmos o dinheiro que o Estado gasta por aluno, daria para ter uma escola de elite. Onde o dinheiro se desperdiça? Por que em uma escola qualquer, que tem turmas de 40 alunos, a relação entre o número de professores e de alunos é de um para nove? Por que os laudos e os atestados médicos são tantos? Porque a situação que se criou nas escolas é a do descaso. Esse é um absurdo.
Onde mais ocorre o desperdício nas escolas?
O desperdício de tempo também é enorme em uma aula. Pelo tipo de trabalho que se faz, quando se dá aula, uma parte dos alunos não tem condições de perceber o que está acontecendo, porque não têm os chamados pré-requisitos, e se desliga. Há um outro conjunto de crianças que sabem mais do que o professor está explicando – e também se desliga. Há os que acompanham, mas nem todos entendem o que o professor fala. Em uma aula de 50 minutos, o professor desperdiça cerca de 20 horas. Se multiplicarmos o número de alunos que não aproveitam a aula pelo tempo, vai dar isso.
O desperdício maior tem a ver com o funcionamento das escolas. Os professores são pessoas sábias, honestas, inteligentes e que podem fazer de outro modo: não dando aula, porque dar aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que requer muito estudo, muito tempo e muita reflexão.
As famílias não estão acostumadas com escolas que não têm classe, professor ou disciplinas. Querem o conteúdo para o vestibular. Como se rompe com esse tipo de mentalidade?
Pode-se romper mostrando que é possível. Eu falo do que faço, e não de teorias. O que fiz por mais de 30 anos foi uma escola onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a melhor escola nas provas nacionais e nos vestibulares. Justamente por não ter aulas e nada disso.
Por que uma escola que não tem provas forma alunos capazes de ter boas notas em provas e concursos?
Exatamente por ser uma escola, enquanto as que dão aulas não são. As pessoas têm de perceber que não é impossível. E mais, que é mais fácil. Posso afirmar, porque já fiz as duas coisas: estive em escolas tradicionais, com aulas, provas, com tudo igualzinho a qualquer escola; e estive também 32 anos em outra escola que não tem nada disso. É mais fácil, os resultados são melhores.
Na concepção do senhor, o que é uma boa escola?
É a aquela que dá a todos condições de acesso, e a cada um, condições de sucesso. Sucesso não é só chegar ao conhecimento, é a felicidade. É uma escola onde não haja nenhuma criança que não aprenda. E isso é possível, porque eu sei que é. Na prática.
O professor que está em uma escola tradicional tem espaço para fazer um trabalho diferente? O senhor vê espaço para isso?
Não só vejo, como participo disso. No Brasil, participei de vários projetos onde os professores conseguiram escapar à lógica da reprodução do sistema que lhe é imposto. Só que isso requer várias condições: primeiro, não pode ser feito em termos individuais; segundo, a pessoa tem de respeitar que os outros também têm razão. Se, dentro da escola, os processos começam a mudar e os resultados aparecem, os outros professores se aproximam. Não tem de haver divisionismo.
O senhor acha que a mudança na estrutura da escola poderia partir do poder público ou depende da base?
Acredito que possa partir do poder público, mas duvido que aconteça. As secretarias têm projetos importantes, mas são de quatro anos. Uma mudança em educação precisa de dezenas de anos. Precisa de continuidade. E isso é difícil de assegurar em uma gestão. Precisa partir de cada unidade escolar e do poder público juntos.

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Como a educação brasileira começou a mudar

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Oficina do Projeto Autonomia, iniciativa da UnB, em Brasília. Lançada em 2012, procura investigar e refletir sobre práticas educacionais inovadoras
Em todo o país, coletivos e escolas enxergam atraso dos métodos educacionais vigentes e constroem alternativas. É hora de mapear e articular este movimento

Por Tathyana Gouvêa
Junho de 2013. Homens e mulheres das mais diversas idades, classes sociais e etnias nas ruas do Brasil. De Norte a Sul, de megalópoles a pequenas cidades do interior do país, as manifestações populares ganharam as ruas e a mídia brasileira. Dentre as diversas reivindicações estava a melhoria da educação. Para entendermos tal clamor das ruas é preciso compreender que o Brasil, por muitos séculos, teve um sistema educacional para poucos. Apenas com o Manifesto dos Pioneiros, de 1932, a educação laica, pública, gratuita, obrigatória e única entrou na pauta das políticas públicas.
Durante todo o século XX a luta foi para garantir a educação de todos (uma nação que na época já tinha mais de 100 milhões de pessoas). Ainda na década de 1970 as dificuldades eram grandes. Mesmo conseguindo que todos estivessem matriculados no 1º ano, a desistência e a reprovação eram altíssimas, resultando em apenas 40% de alunos matriculados no ano seguinte. O sistema foi se adequando para reter os alunos na escola: criaram-se os ciclos, a progressão automática, e outras tantas estratégias para consolidar a escola como a principal, única e oficial instituição de transmissão dos conhecimentos socialmente valorizados, demanda esta introduzida inclusive por órgãos internacionais. No final do século XX o país tinha garantido a entrada e permanência, chegando em 2006 com 98% das crianças de 7 a 14 anos na escola.
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Pactuação entre educadores e alunos, numa das iniciativas do Projeto Autonomia, da UnB

Mas essa marca foi alcançada com o crescimento do número de escolas e profissionais vinculados a elas sem valorizar a cultura local, a formação dos profissionais, as adequadas condições de trabalho, etc., resultando em um ensino massificado, baseado em apostilas e provas (internas e externas). É diante desse cenário que surgem as manifestações de 2013, cujo clamor era “melhorar a qualidade”, sem direcionar essa demanda para alguma solução, sem especificar o que a população entendia por qualidade. Se por um lado a demanda é genérica nas ruas, as diversas pessoas que já trabalham por uma melhor educação nos diversos cantos do país apareceram nesse momento como articuladores, esboçando possíveis respostas. Ainda que evidenciem ou não em suas falas e ações a correlação com as manifestações (até porque a grande maioria deles já desenvolvia seus projetos antes disso), o fato é que é possível perceber no país um novo discurso se formando em contraposição à escola convencional.
Os projetos que já existiam estão hoje mais fortes e atraindo maior interesse. Novos projetos estão sendo criados e algumas redes começam a se formar e ganhar força (como a Rede Nacional de Educação Democrática), culminando, por exemplo, em um novo manifesto, intitulado “III Manifesto pela Educação” (fazendo referência aos manifestos de 32 e 59, ambos seguidos e “abafados” por golpes de Estado). Diferentemente dos outros manifestos, este foi escrito por educadores e contesta a própria estrutura da escola. Suas proposições vão desde a comunidade de aprendizagem e o ensino integral em tempo integral até a permissão do ensino domiciliar. Este documento teve assinaturas coletadas por internet  e está aberto para contínuas contribuições e debate. Foi entregue em Novembro de 2013 ao Ministério da Educação durante a primeira Conane (Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação), realizada em novembro de 2013, em Brasília.
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A Conane foi um marco do movimento que vem ganhando força no Brasil por ter atraído diversas iniciativas de todo o território nacional, dando maior visibilidade a cada uma delas, fomentando também a troca de experiências e a criação de uma rede. O evento foi o resultado coletivo de uma série de iniciativas que vale a pena descrever, para exemplificar as redes que vêm se formando e como atuam. O
professor
José Pacheco, da Escola da Ponte em Portugal, mudou-se para o Brasil e passou a trabalhar junto a escolas e projetos brasileiros (em 2013 chegou a fazer cerca de trezentas viagens para visitar os mais de cem projetos que acompanha pelo país). Inspirado por ele, um grupo de educadores criou em 2008 a rede “Românticos Conspiradores”. Essa rede se mobiliza principalmente pela internet, trocando informações e conteúdo, mas também realiza encontros presenciais, visando à superação do paradigma educacional vigente. Em 2012 fizeram o 3º Encontro Nacional da Rede Romântico Conspiradores.
Por sua vez, o Coletivo Gaia Brasília, formado em 2012, ligado às práticas sustentáveis, e o Projeto Autonomia, criado em 2010 na Universidade de Brasília (UnB) para investigar e refletir sobre práticas educacionais inovadoras, começaram a se articular para fazer um evento em Brasília dando seguimento às atividades do Manifesto. Em 2013 ocorre ainda a chegada no Brasil de quatro europeus, motivados pelas notícias a respeito das manifestações, reunidos sob um projeto chamado “EduOnTour”. Este coletivo visava fazer um giro pelo país levantando diversas iniciativas, articulando e mobilizando a rede. Esses jovens reuniram todos esses interesses e propuseram o Conane. Além do evento, a iniciativa alimentou o mapa do Brasil no Reevo e terá ainda a produção de um documentário. A ideia de um levantamento de práticas também foi desenvolvida pelo coletivo Educ-Ação no livro “Volta ao Mundo em 13 escolas” e pelo “Caindo no Brasil”, que em breve terá um livro e um mapeamento lançados. Sobre mapeamentos é importante constar que a socióloga brasileira Helena Singer, em 1995, foi quem fez o estudo pioneiro no mundo levantando as práticas educacionais democráticas pelos 5 continentes.
Além de inúmeros coletivos que estão sendo criados, fomentando um novo olhar para a educação, as Fundações têm tido um importante papel dentro do movimento. Elas viabilizam algumas iniciativas e organizam diversos encontros para se pensar o futuro da educação. De maneira geral, atuam diante de uma abordagem tecnológica, buscando atrelar empresas de software, especialmente startups, com empresas educacionais, na tentativa de trazer inovação para a área, passando, portanto, por um redesenho da organização escolar.
É possível perceber que o movimento de repensar o modelo escolar vigente ganha força no país também em função dos conteúdos que começam a ser veiculados na grande mídia. A rede Globo e o grupo Abril têm veiculado reportagens, documentários, entrevistas, etc. em que escolas não convencionais são apresentadas ao grande público. Com uma abrangência menor, porém com uma comunicação mais efetiva e profunda, está uma série de filmes que tratam sobre um novo olhar para a educação e a escola, como o documentário argentino de grande repercussão no Brasil “Educação Proibida” (2012), ou ainda “Sementes do nosso quintal” (2012) e “Quando Sinto que Já Sei”, que será lançado este ano. Esses e outros filmes que tratam dessa temática, com destaque à infância, foram apresentados na Ciranda de Filmes em 2014, estimulando o olhar de muitos paulistas a uma nova e possível educação.
As práticas alternativas à escola convencional sempre existiram no país e no mundo, algumas sufocadas por movimentos ditatoriais, como os Colégios Vocacionais da década de 1960 em São Paulo, outras que desde que iniciaram suas atividades seguem se sustentando e se tornam cada vez mais estruturadas e de interesse para a sociedade, como as escolas Waldorf. A diferença que evidenciamos agora é a convergência dos discursos para a superação da escola convencional. Educadores, jornalistas, empresários e governo reconhecem, ainda que por razões diversas, o fracasso do sistema de ensino brasileiro e do modelo escolar vigente e partem, em certo grau juntos, para desenhar algo novo e que ainda é bastante incerto. O foco na criança, no respeito ao seu ritmo e aos seus interesses, em uma escola que dialogue mais com a comunidade, com conteúdos ligados diretamente à realidade das crianças e jovens, com um espaço flexível, aberto e dinâmico, parece ser uma tendência.
Mas em alguns importantes pontos essa discussão ainda não chegou, provavelmente por serem temas divergentes e não aglutinadores, em um movimento que ainda está se estruturando. Algumas dessas questões seriam: o papel do professor, o currículo, as formas de avaliação, a sustentação de projetos de caráter pessoal, o repasse de verba pública, a coexistência de modelos diante de uma rede pública estruturada, baseada em vestibular e avaliações externas, dentre outras. De qualquer maneira, é notável o avanço que o movimento teve em menos de um ano das manifestações no Brasil. Que os debates continuem e as possibilidades floresçam!

Este artigo é baseado na tese de doutorado que venho desenvolvendo desde 2012 e que será  concluída em 2016 junto à Faculdade de Educação da USP. O objetivo deste estudo é analisar o movimento de renovação escolar que está acontecendo no Brasil. Se você tem comentários, criticas ou sugestões que possam contribuir com esta investigação, por favor, me escreva! (tathyana.gouvea@gmail.com)
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Leia também: 
A CONSTRUÇÃO PEDAGÓGICA DE SUJEITOS
EM PROCESSOS FORMATIVOS
– uma experiência com educadores e educadoras sociais no nordeste brasileiro.  AQUI


Para que a escola não atrase o século 21


Jeanette Dieti / Fotolia.com
Grupo internacional pesquisa alternativas para adaptar educação às novas dinâmicas da vida. Entre exemplos, experiência sueca em que alunos desenvolvem, com ajuda de tutores, planos de estudo adequados a suas paixões e afinidades
No Porvir
Não importa muito como ela seja chamada: educação 3.0, educação para o século 21, educação para a vida. Mas a verdade é que muitos educadores já perceberam que os sistemas educacionais precisarão se adaptar se quiserem formar alunos capazes de lidar com a quantidade de informação hoje acessível, hábeis em administrar problemas cada vez mais complexos e prontos para serem atuantes em um mercado que exige habilidades que não ensinadas nos livros. Cientes desse descompasso entre o que a escola oferece e o que o mundo exige, um grupo de especialistas decidiu formar o Gelp (Global
Education
Leaders’ Program) para discutir problemas reais de sistemas educacionais espalhados pelo mundo e suas possíveis soluções.
“Não há uma resposta única nem um só modelo a ser seguido”, diz David Albury, diretor de design e desenvolvimento do Gelp. O britânico, que foi conselheiro do primeiro-ministro para assuntos estratégicos entre 2002 e 2005, vem conversando com alunos e educadores e conhecendo modelos em todo o mundo. Diante do que tem visto, Albury encontra três tendências importantes para a educação do século 21personalização, aprendizado baseado em projetos e avaliação por performance.
A personalização, explica ele, não quer dizer necessariamente a adoção de plataformas educacionais on-line, mas a configuração do aprendizado para necessidades de cada aluno. “A tecnologia é parte essencial nesse processo, mas não é o processo”, afirma ele. Como exemplo de escola que desenvolve um ensino personalizado, Albury cita a escola sueca Kunskapsskolan, em que os alunos desenvolvem, com a ajuda de tutores, seus planos individuais de estudo adequado às suas paixões e afinidades, com metas claras, que podem ser acompanhadas ao longo do ano.
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O aprendizado baseado em projetos, afirma Albury, tem sido uma escolha que escolas ou grupos de escolas têm feito para desenvolver habilidades nos alunos de maneira menos “compartimentalizada”. Nessa abordagem, os alunos precisam desenvolver um projeto e, durante o processo, aprendem conceitos das mais diversas disciplinas, trabalham em equipe, tomam decisão. Apesar de ser uma tendência, diz o britânico, ele não conhece nenhum sistema público de ensino que use o formato em todas as suas escolas. “Não precisa ser adotado em sistemas inteiros. Isso pode acontecer de forma piloto”, afirma. “Não podemos esperar que os sistemas já comecem perfeitos. Leva tempo para acertar, as pessoas cometem erros.”
Já sobre as avaliações por performance, afirma ele, surgem na tentativa de medir e reconhecer habilidades que os testes de múltipla escolha não conseguem. “Como é que eu avalio se um aluno é criativo? Ou se ele é bom em resolver problemas da vida real?”, pergunta Albury. Essa questão, que tem afligido líderes educacionais de todo o mundo, não está respondida, mas há algumas tentativas, diz o inglês, de usar colegas, família e comunidade na construção de novas formas de avaliar.

crédito Porvir
Outra realidade que tem se tornado cada vez mais clara é que processos educativos muito ricos têm ocorrido fora da escola. Albury conta que esteve em uma reunião com alunos canadenses de 13 anos. Um deles lhe disse: “Quando eu venho para a escola, eu sinto que eu estou sendo desempoderado. Fora da escola, eu tenho acesso a várias fontes de informação. Na escola, eu tenho um professor, um livro, talvez um computador”. Um colega dele concluiu: “A escola é o lugar que atrasa o século 21”.
Trazer a educação que ocorre fora da escola para dentro é um desafio a mais para os professores, que precisam remoldar a forma como lidam com o ofício. “É também uma questão de identidade dos professores.” Para tanto, a participação das universidades é fundamental. Nesse quesito, diz o especialista, a demografia do Brasil é mais favorável do que a de países europeus, onde há poucos professores se formando e muitos estão em atividade há muitos anos. “Mais difícil do que aprender é desaprender”, afirma Albury.
Equipe brasileira
Formado há quatro anos, o Gelp começou com quatro membros: Ontário (Canadá), Nova York (EUA), Vitória (Austrália) e Inglaterra. No ano passado, o Brasil passou a fazer parte do Gelp, que hoje já tem 13 membros, entre cidades, estados e países. Entre os representantes brasileiros estão a Secretaria Municipal do Rio e as estaduais de São Paulo, Goiás e Pernambuco. Os participantes se encontram duas vezes por ano e, virtualmente, compõem uma rede com atividades ao longo do ano. Em novembro, o Rio de Janeiro será anfitrião do segundo encontro de 2012.
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Com projeto de formação crítica, Ginásios Vocacionais foram extintos pela ditadura

Fonte: site aprendiz



No meio de uma calorosa conversa vem uma pergunta: “Quais os fatores que determinaram o subdesenvolvimento do Brasil?”.
Não foi preciso tempo para as respostas: “Deficiência de assistência social e alto crescimento demográfico”. “Fome e dependência politica estrangeira”. “Desemprego como consequência da monocultura latifundiária”. “Falta de aproveitamento dos recursos naturais”. “Desequilíbrio econômico entre indústria e agricultura e más condições de trabalho”.
As hipóteses não foram levantadas em uma universidade ou em um instituto de pesquisa. Elas foram pensadas nos bancos de uma escola, por estudantes ginasiais – atual ensino fundamental II.
Registrado no documentário Vocacional, uma Aventura Humana, o debate ocorreu em um dos seis Ginásios Vocacionais do estado de São Paulo, que funcionaram nas cidades de Americana, Batatais, Barretos, Rio Claro, São Caetano do Sul e São Paulo, entre 1962 e 1969, até serem extintos pela ditadura militar, que os considerou subversivos.
“Muita gente acha que o termo vocacional está relacionado à profissão, mas não é. Esse nome foi escolhido porque o sistema visava formar homens livres, críticos e criativos, de modo que ele pudesse arquitetar sua vocação ontológica de ser humano”, conta a ex-diretora do Ginásio de Americana, Aurea Cândida Sigrist de Toledo Piza.
O ex-aluno Luiz Carlos Marques, ou Luigy, como é conhecido pelos colegas do Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha, de São Paulo, comprova: “Minha emancipação intelectual se deu no Vocacional e não na universidade. O que me valeu muito lá foi o que aprendi quando criança”.

Como funcionava?


Com todo currículo pautado em Estudos Sociais, as aulas não eram divididas em disciplinas, mas em áreas do conhecimento. “Estudávamos psicologia, sociologia, antropologia, história e geografia e tudo girava em torno dessas discussões”, lembra Luigy, que hoje é diretor da Associação dos Ex-Alunos e Amigos do Vocacional (GVive). “Meninos e meninas estudavam juntos, o que era um grande avanço para a época. Tínhamos meninas líderes de classes e meninos aprendendo a trocar fraudas nas aulas de educação doméstica”.
Nos quatro anos de permanência no Vocacional, o foco dos estudos era dividido, sendo no primeiro o município, no segundo o estado de São Paulo, no terceiro o Brasil e no quarto o mundo. A professora Aurea explica que, assim, trabalhava a partir de unidades pedagógicas em círculos concêntricos. “As áreas de estudos sociais colocavam um problema ligado à realidade e todas as demais áreas trabalhavam esse tema”.
A partir daí os alunos faziam estudos supervisionados, individuais, livres e em equipe. Deles saíam sínteses, que eram avaliadas e debatidas em assembleia, até que se chegasse a uma única, mais completa. “Os alunos perguntavam, recebiam críticas dos colegas e assim aprendiam a argumentar, a se colocar e a respeitar o outro”, explica Aurea.
Também haviam os chamados estudos do meio ou pesquisas de campo, como lembra Luigy. “Fazíamos passeios nos bairros da cidade levantando o que tinha lá. Catalogávamos cinemas, teatros e até zonas de prostituição”, lembra. “Algumas equipes chegaram a ir para a Bolívia e para o Peru”.
Parte do dinheiro para os trabalhos de campo do Ginásio Vocacional de São Paulo vinha da cantina da escola, que era gerida pelos próprios alunos. Organizados em equipes, eles assumiam periodicamente a limpeza, o atendimento, o troco e o balanço final da cantina. Parte do lucro era divido igualmente entre os alunos, depositados na conta do banco escolar, que cada um possuía.
“Fazíamos tudo em equipe. Professores e alunos almoçavam juntos, jogavam bola juntos”, lembra Luygi. “Quando alguém fazia algo errado era realizada uma assembleia para que todos decidissem o que seria feito com o responsável”.
Ser aceito em um dos Vocacionais não era simples. Os candidatos passavam por entrevistas com pais e alunos, além de estarem sujeitos a disponibilidade de vaga. “Se 15% dos moradores da região fossem da classe A, teríamos 15% dos alunos da classe A. Se 30% dos moradores fossem de classe E, 30% dos alunos também seriam”, explica Aurea. “As classes heterogêneas ajudavam a amadurecer”.
As avaliações eram bimestrais. Elas não eram feitas por notas, mas sim por conceitos e, principalmente, pela autoavaliação. “As notas estabelecem métodos muito rígidos. Com os conceitos tínhamos cinco faixas: superior, acima da média, médio, abaixo da média e inferior”, lembra Aurea.
Como começou?


As bases para a experiência dos Ginásios Vocacionais, que a princípio, seria expandida para toda a rede estadual de São Paulo, começaram em 1959. “Havia uma proposta de reforma do então ensino secundário profissional [atual ensino médio], que passaria a se chamar Ensino Industrial, para os homens, e Educação Doméstica para as mulheres”, conta o doutor em educação Daniel Chiozzini, que pesquisou o vocacional no mestrado e doutorado. “Nesse projeto havia quatro artigos sobre a criação de Ginásios Vocacionais, que seriam uma transição da educação básica para o novo sistema”, explica.

"A história da professora Maria Nilde"
Maria Nilde Mascellani nasceu em São Paulo, em 1931. Formou-se pedagoga na USP. Lecionou em escolas públicas e trabalhou no Instituto de Educação de Socorro, e em 1959, quando fez parte da equipe das Classes Experimentais.
Assumiu a coordenação do Serviço de Ensino Vocacional, onde sofreu inúmeras pressões, até ser presa pela ditadura, “indiciada no inquérito policial sobre atividades subversivas para sovietizar o país”, segundo sua ficha do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), de 1974.
Depois de liberta, Maria Nilde criou um centro educacional na Faculdade de Psicologia da PUC-SP, onde foi professora, a partir de 1970. Não se casou e nem teve filhos. Morreu em 1999, vítima de um infarto, aos 68 anos em São Paulo.

Paralelo a isso, o Ministério da Educação e Cultura aprovou uma portaria que permitia a criação de classes experimentais, nas quais novas propostas pedagógicas seriam postas em prática. “As classes experimentais de Socorro, em particular, começaram a conceber uma nova proposta pedagógica, a partir das ideias de uma professora, chamada Maria Nilde Mascellani”, diz Chiozzini.
Em 1961, o então secretário da Educação de São Paulo, Luciano de Carvalho, gostou da experiência de Socorro. “Ele quis expandir o modelo e inseriu um apêndice na legislação de reforma do secundário, que criou o Serviço de Ensino Vocacional [SEV], sob responsabilidade da professora Maria Nilde”, explica o especialista.
“O SEV garantia uma autonomia administrativa muito grande na gestão das novas escolas. A proposta era levar os alunos ao engajamento e transformação do meio”, conta Chiozzini. “Todo esse processo foi muito influenciado pelo intenso movimento intelectual dos anos 1960”.


Por que acabou?

Com o passar do tempo o sistema de ensino começou a sofrer crises internas e externas. “Havia diferenças e embates na experimentação. No auge da crise a professora Maria Nilde demitiu muita gente”, conta Chiozzini. “A gota d’água foi em Americana onde um grupo de professores foi demitido e dois deles denunciaram o vocacional para o exército, alegando que formava comunistas”.
Em junho de 1969, com a denúncia do
professor
Francisco Cid, de Artes Industriais, o diário oficial publicou a ameaça de destituição das professoras Maria Nilde e Aurea. Ela se lembra do episódio: “A Maria Nilde foi a delegacia e o general responsável tentou convencê-la a assinar alguma coisa dizendo que eu era comunista ou rolaria a cabeça dela. E ela disse: ‘Então rola a minha cabeça’”, lembra em entrevista ao documentário Vocacional, uma Aventura Humana. No dia seguinte o Diário Oficial publicou a destituição de Maria Nilde. Depois desse episódio todos os Ginásios foram fechados. Em São Paulo e Americana o exército invadiu a escola. “Os professores foram presos na cozinha”, conta Chiozzini. “Houve muitos atos de pais e alunos pedindo para o governo voltar atrás”. Isso não aconteceu e em 1970 todas as escolas já funcionavam no sistema convencional.
Relatório do Ministério do Exército sobre o Ensino Vocacional, de 1969 - 
“Tratava-se de um sistema de ensino caro, que usufruía de uma situação privilegiada e ampla autonomia”.
- “Foi uma experiência prolongada e onerosa de ensino que, ao que tudo indica, não produziu os resultados desejados”.
- “Ofereciam ambiente propicio a indagações e instilações ideológicas na mente dos alunos, em que agentes subversivos atuam subrepticiamente nos meios estudantis”.
- “As constatações feitas indicam um sistema de ensino de conteúdo socializante”.
“Eu tive muita dificuldade de encontrar uma escola para os meus filhos. Moro em São Paulo, mas optei por manda-los estudar em Cotia [SP], na escola de dois professores que foram do Vocacional”, conta Luigy. “Sempre me pergunto por que meus filhos e netos não puderam passar por uma experiência como essa?”
Na análise do especialista Chiozzini, apesar dos problemas, o sistema de ensino fazia jus a todos os elogios. “O Vocacional tinha problemas e se tivesse durado mais tempo poderíamos analisar e criticar melhor, mas não podemos condenar nada. Era uma proposta transformadora, que marcou muito a vida dos estudantes”.

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Quando ensinar a ler virou subversão: a ditadura e o combate ao combate do analfabetismo.   AQUI

Mostras Virtuais abordando o tema Memória da Educação, colocando em foco a documentação do Fundo do Movimento de Educação de Base –MEB. AQUI