domingo, 10 de setembro de 2017

Cultura além do consagrado

O Brasil mudou e mudou também a forma de ver e fomentar a cultura, incluindo aí tudo que se produz, desde o artesanato até os grupos tradicionais de forró, passando pela união de forças entres descendentes de quilombolas e pomeranos no Sul do país.


Em Janduis (RN) ponto de cultura “Em Cena Ação” durante espetáculo
Em Janduis (RN), ponto de cultura “Em Cena Ação”, durante espetáculo
Foto: Divulgação



Falar sobre Pontos de Cultura – capítulo importante do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura – sempre rende conversas longas, relatos variados e conclusões diversas, mas há um consenso: a experiência pode mesmo fomentar o que já existe e estimular o surgimento de variadas formas de expressão cultural do Brasil.

De 2003 a 2009, foram 7 mil projetos financiados em mais de duzentos editais públicos – que antes não existiam. É nesse contexto que nasce o programa e os pontos, tendo como pano de fundo a diminuição da segregação social no país, multiplicando os espaços e as chances reais de milhões de pessoas.

Condição para ser um ponto de cultura é estar em rede, a fim de trocar informações, experiências e realizações. Segundo as regras publicadas no site do MinC, organizações e entidades interessadas “devem solicitar a criação da rede de Pontos de Cultura ao MinC, indicando o número de pontos a serem selecionados (uma rede é constituída por, no mínimo, quatro Pontos) e dispor de contrapartida financeira mínima de um terço do valor total do convênio a ser firmado”.

Mas o ponto não tem um modelo único, nem exige instalações físicas, programação ou atividade. Um aspecto comum a todos é a transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e comunidade.

A diversidade brasileira

Os exemplos são variados, já existe bibliografia sobre o tema, que também é objeto de teses acadêmicas. O programa possibilitou, em um dos exemplos mais citados, Vídeo nas Aldeias, o desenvolvimento de um projeto de inclusão digital de aldeias indígenas. Instituído desde 2005, esse ponto conseguiu colaborar com a formação de cineastas, roteiristas, diretores e editores índios. “O índio na frente e atrás das câmeras”, explica Vincent Carelli, realizador desta ação. É a continuidade da cultura tradicional por meio da utilização de técnicas e ferramentas digitais.

  

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva explicou os Pontos de Cultura como “espaços permanentes de experimentação, encanto, transformação e magia”. São produtores de conhecimento, do moderno ao tradicional, englobando tudo que se possa alocar debaixo do guarda chuva da diversidade.

Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura, falava que os pontos eram “uma espécie de ‘do-in’ antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país”.

Para além da experiência de criar políticas de Estado, são resultado dos debates ocorridos na preparação da campanha presidencial de 2002, que culminou em momento importante da história do avanço das políticas culturais.

 A ação do MinC muda o foco, levando em consideração que em cada lugar remoto do país existe quem crie cultura de alguma forma e por isso o Estado deveria reconhecer e dar sustentabilidade ao que já exista, porém até aquele momento, desprovido de qualquer apoio.

Em 2003, Célio Turino levou sua experiência na Secretaria de Cultura do município de Campinas (SP) para a Secretaria de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura. Entusiasta e um dos responsáveis pelo início de tudo, Célio desenha uma equação para explicar os pontos: PC = (a + p”) = E. Traduzindo: ponto de cultura é o resultado da soma autonomia mais protagonismo elevado à potência, ou seja, é igual a empoderamento/emancipação. Muito mais do que só cultura.

Em 2004 havia R$ 5 milhões para os pontos de cultura. Esse valor passou a R$ 55 milhões em 2005, graças a uma emenda parlamentar inédita em termos de investimento na área. O primeiro edital conveniou 210 inscritos, passando a 400, em 2005; 700 em 2006; mais de 2 mil em 2007, e em 2011 são mais de 3 mil conveniados pelo Brasil afora, atuando em redes sociais, estéticas e políticas. Segundo os cálculos de Turino, são 8 milhões de pessoas envolvidas ao custo mensal de R$ 5 mil.

No Almanaque Cultura Viva, editado pelo MinC, com o balanço das ações do programa, na apresentação o então ministro Juca Ferreira escrever que “o governo compreendeu que a Cultura é uma ferramenta poderosa para a redução das desigualdades e para a universalização de conquistas de qualidade de vida, permitindo ao cidadão comum o desenvolvimento de suas capacidades, da inventividade e do senso crítico. Estratégica para a economia, tanto na participação do PIB nacional, quanto na inserção global do país no mercado internacional”.

Redesenhar o programa

Marta Porto foi secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do MinC até o dia 1º de setembro. Sua demissão estava em vias de ser anunciada oficialmente quando finalizamos este texto. Mas antes disso, ela e sua equipe ficaram dois meses trabalhando e discutindo as soluções de problemas e a ampliação do programa Pontos de Cultura.

Em setembro será divulgado o resultado da segunda fase do termo de cooperação assinado com Ipea, englobando estudos sobre os pontos de 2008 a 2010. O levantamento foi feito diretamente com os pontos e a partir das respostas obtidas será apresentada proposta de andamento do programa.

Marta havia adiantado o compromisso e prioridade para os temas voltados para questões da gestão administrativo-financeira dos pontos e acelerar a força tarefa, que já está trabalhando, para colocar em dia as prestações de contas com problemas, e assim finalizar os pagamentos pendentes.

A então secretária, que integrou o conselho consultivo do programa Cultura Viva em seu começo, falou que, do ponto de vista político, o governo federal espera introduzir em todas as suas áreas ações de combate à miséria, que é o carro chefe do governo Dilma. E a cultura não fica fora disso.

“Em conjunto com outros programas, de outros ministérios, vamos atuar no fortalecimento dos pontos de cultura como espaços nos quais os agentes culturais são protagonistas que podem articular políticas setoriais”, explicou Marta, ponderando que há uma variedade imensa de pontos de cultura. O próximo passo será fazer levantamento de toda tipologia existente entre os pontos.

Redesenhar o programa, assim Marta Porto descreveu o futuro dos pontos. “São três compromissos básicos: definição do que fazem os pontos e sua atuação, política de fomento mais apropriada, levando em conta as características regionais e dos projetos de forma a pensar alternativas de sustentabilidade, além da implantação real do pacto federativo são apresentados por Marta como o que virá para o futuro. E, também, a consolidação de legislação para garantir as iniciativas que expressem a diversidade nacional”.

O programa Cultura Viva fica com R$ 80 milhões dos R$ 800 milhões do orçamento do MinC. Foi feito investimento nas regionais e contratação de mais dois profissionais por região para acelerar os processos. Além de ampliar e implantar novos pontões a partir de ação conjunta com estados e municípios, o MinC pretende lançar novas redes e vem atuando em ações interministeriais. Nesse sentido, Marta anunciou várias atividades e editais com as secretarias de Direitos Humanos, de Juventude e de Políticas para as Mulheres.

Demanda da sociedade

O Coletivo Digital, grupo de São Paulo, foi idealizado no final de 2004 para levar adiante a experiência de seus integrantes nas áreas de inclusão digital, disseminação e utilização do software livre, e do conhecimento colaborativo.

Os jovens do Coletivo Digital contam que o surgimento dos pontos de cultura, em 2003, foi resultado de pressão para que o governo investisse no que já estava em andamento, apoiar o que já acontecia, respeitando a diversidade brasileira. A gestão de Gilberto Gil apostou nas “pequenas” ações culturais, fazendo o país descobrir várias experiências, do rock ao candomblé.

Ponto de cultura parte do princípio que se o governo investe, fazendo girar o ecossistema cultural das comunidades, gera cultura e público. O pessoal do Coletivo Digital vê os pontos de cultura “como resultado das demandas da sociedade civil e da coragem de Gil, que entrou no ministério para comprar brigas”. Mas relatam problemas, como atraso no repasse das verbas, dificuldades nas prestações de conta e, com o início da atual gestão, pouco acesso aos gestores no MinC. Para o Coletivo, o ministério precisava avançar na continuidade do projeto e também encaminhar questões que são caras ao movimento de cultura. Entre eles, a reforma da Lei Rouanet e o projeto de lei de direitos autorais, que ainda não foi apresentado.

O livro mais recente de Célio Turino, “um radical, utópico e comunista”, como ele mesmo se define, “Ponto de Cultura – O Brasil de baixo para cima”, apresenta uma sensível radiografia de como são e o que fazem os pontos de cultura de Norte a Sul, de Leste a Oeste, exemplos variados e que de fato “des-silenciam” os facetados brasis que se espalham pelo enorme território nacional.

Um livro que emociona pela simplicidade do relato e pela profundidade do significado da ação dos pontos, que podem ser pautados pelos interesses e cultura indígena, de idosos, culinária, religião e até manicômios. Os pontos, para Célio e outros entusiastas, provam que a cultura é diversa e não tem cercas.

Além de escrever (e muito) sobre pontos de cultura, Turino tem sempre o que contar. Entre exemplos da vida real, como do nada um grupo ergue um super projeto que atenda a juventude nas periferias, ou como idosos encontraram em um ponto a forma de mostrar à comunidade sua vida, dá também a receita de como resolver os problemas administrativos do projeto.

Além de serem espaços de continuidade cultural, de construção ou aglutinação de pessoas e ideias, Turino também defende que os pontos têm dimensão econômica e cita como  exemplo o Vale do Araripe, Ceará, onde a pré-história, as pinturas rupestres e os fósseis fazem  parte da vida da comunidade. A movimentação é grande, os jovens produzem de música a exposições e para a economia da cidade, com a demanda de turistas, também gerou dividendos para Nova Olinda.

Para ele, seria simples dar continuidade ao projeto dos pontos. Lembrando que há problemas somente em 15% do total do projeto, Turino defende a proposta de algo como o programa bolsa família. “Os pontos são como as famílias que o Estado deve amparar. Um cartão de micro financiamento, com prestações de contas a partir dos resultados e não da burocracia procedimental”, propõe.

Ocupando a América Latina

Há dúvidas sobre como ficarão os pontos de cultura, mas isso é só no Brasil, porque outros países da América Latina, como Guatemala, Costa Rica, Argentina e Peru, já estão colocando o projeto em ação.

Billy Ochoa, gestor cultural comunitário do Colectivo Caja Lúdica, da Guatemala, relata com animação a construção da proposta para fora do Brasil. “Estamos iniciando esta construção na Guatemala e na América Central. Estamos dando os primeiros passos e iremos ao Fórum de Política, Cultura e Juventude levar esta ideia”.

No Peru, Paloma Carpio, do projeto Mundo Tarumba, vai na mesma direção. E já há muita coisa acontecendo, apesar do pouco tempo: no último dia 21 de agosto, ocuparam as ruas do bairro onde atuam, Nova Lima, e levaram aos vizinhos e crianças espetáculos de teatro e música. “Cultura Viva para Nova Lima é o programa cultural central mais importante da atual gestão. Esperamos fortalecer a produção artística existente na cidade e contribuir para a construção de uma maior consciência cidadã na capital”, defende Paloma.

Todos os contatos procurados retornaram mostrando não só entusiasmo, mas projetos e propostas e pelo visto se encaminha para ser um projeto de todo Mercosul.


Fernanda Estima é editora assistente de Teoria e Debate



Referências





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